Alguns poemas de Maria Rosário Pedreira





Amei-te como na vida se ama uma só vez;
e todos os afetos que dividi depois eram
apenas cinzas que evocavam o brilho dessa
imensa chama. Troquei suspiros e beijos

com muitas outras bocas quando, na minha,
o travo da solidão era uma amarga desculpa
para repartir o pouco que não tinha; mas

em nenhuma quis morder fruto mais
suculento que o silêncio nem permiti que
pousasse sequer o meu nome verdadeiro -
que só nos teus lábios era graça e canção

e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão  displicente
naqueles que o cingiram que me faria velha
a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes,
as convulsões da pressa e os veios de sal que
descreviam no litoral da pele o aviso de uma
paisagem interior abandonada. Mas de nada

me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o
que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou
e isso há de guardar-te para sempre de voltares.


(Maria do Rosário Pedreira)
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                             “Ninguém pode tomar banho duas vezes nas águas do mesmo rio” – Heráclito
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Nunca te esqueci – é este um amor maior
que atravessa a vida e resiste à cicatriz
do tempo. O que ontem me disseste agora
o ouço, como se nada tivesse interrompido
a magia do instante em que as nossas bocas
se aguardavam na distância de um beijo e
o olhar tocava o corpo antes da mão. Se

hoje vieres por esse livro que deixaste (e cuja
lombada acariciei todos os dias que durou a tua
ausência como uma nesga de sol acaricia um
rosto no Inverno), encontrarás a sopa a fumegar
na mesa, e a camisa engomada no cabide, e os
lençóis da cama imaculados, e um corpo pronto
para qualquer aventura – e ainda o cão deitado
à porta, à tua espera, como na véspera de partires.

Porque os anos não contam para quem assim ama.

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Nada mudou. Ao fim de tantos anos, o meu
passado é ainda o mesmo passado - nenhum
rosto diferente para desviar o rio da memória,
nenhum nome depois. Para te esquecer,

devia ter partido há muito tempo, como viajam
as aves de verão em verão. E tentei; mas as malas
abertas sobre a cama eram livros abertos, e eu
nunca deixei um livro pela metade. Por ter

ficado, nada mudou jamais - e o meu passado é
ainda o nosso passado; e o rosto que tinha antes
de me deixares é o que o espelho me devolve no
presente - embora os outros me digam que o

que vêem na superfície fria desse lago é um vinco
na água, uma mulher muito mais velha do que eu.


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Chegámos ao amor pelos mapas vincados
da solidão. Quando o veneno das últimas
memórias se diluiu no sangue (como o
orvalho se evapora dos salgueiros assim
que março começa a conspirar), o nosso
silêncio gritou para que alguém o escutasse.

Despimos, pois, as estátuas um do outro
sem o temor de perturbarmos o coração
da pedra; e descobrimos que a nudez era
a única ponte que entre nós se estendia.

Nas imensas noites que se abateram sobre
nós, os nossos corpos deixaram de pertencer
ao mundo: foram como essas aves surdas
que se afastam do bando, eternamente
indiferentes ao apelo do verão. Por isso

creio agora que o amor não passou de uma
desculpa para juntarmos os nossos desamparos;
e não estranho sequer que lábios castigados por
tantos beijos, como foram os teus nunca tenham
nomeado essa doce fadiga que sucede a um
abraço; nem me pergunto porque, ao fechar

os olhos, são hoje ainda as linhas do teu rosto
que as sombras teimosamente me devolvem.

Maria do Rosário Pedreira

OS BOIS E OS LIVROS, António José Forte


OS BOIS E OS LIVROS

Os bois não sabem ler e também não fingem que sabem. É por isso que nunca ninguém viu nenhum boi com um livro debaixo do braço. Mas há gente que tem a mania de ligar os bois aos livros. Ouve-se às vezes dizer: aquele não conhece uma letra nem do tamanho dum boi. E um filósofo alemão, que usava uns enormes bigodes, afirmou certo dia que ler, ler bem, era verdadeiramente uma ruminação, que é o que os bois fazem depois de introduzir a comida na boca. E que é o que não faz a maioria dos que não são bois, isto é, os homens que lêem livros. Os bois não sabem ler e não gostam nem de ler nem de comer livros, esta é a verdade. Por isso andam a puxar carros de bois, a puxar charruas e quando vão às touradas andam a correr dum lado para o outro às marradas. Os homens que sabem ler, mesmo mal, que andam atrás ou à frente dos bois, conforme as circunstâncias, e que não vêem um boi doutra coisa chamam-se ribatejanos. Os meninos, a quem são dirigidas estas palavras de muita sabedoria, não devem imitar o analfabetismo dos bois nem os homens que andam atrás ou à frente deles. Não andar nunca à frente dos bois porque podem tropeçar e cair e serem pisados pelos bois, não andar atrás porque podem levar com os rabos dos bois na cara e, como já sabem ler, não querem com certeza voltar a ser analfabetos. Numa coisa, porém, devem imitar sempre os bois: na ruminação. E isto quer dizer: ler, ler bem, ler com os olhos e com o pensamento.

António José Forte (1931-1988), Uma Faca nos Dentes, 2.ª edição, aumentada, Parceria A. M. Pereira, p. 124, 2003.

Maria do Rosário Pedreira




Não me importa o pão quando não o divido:
farta mesa triste sem companhia. Na tua
ausência não há fome que me devore, e a
gota de vinho na toalha é só mais um borrão
num poema sozinho. Antes de ti nunca

 tive apetite pela vida, as costelas vincadas
 na camisa. Tantos cães escanzelados iguais
a mim cumprindo a solidão das avenidas,
e tão poucas as esquinas. Milagre mesmo

 foi teres parado numa para me alimentares.

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Não tenho planos, nem promessas, nem
filhos que nos convidem para almoços
de domingo – a minha ideia de família
resume-se a um retrato velho preso numa
gaveta; e do amor possível sei tão-só

o que li nos romances que nos salvaram
da desordem quando o meu tempo
andava de ferida em cicatriz. Mas guardo
ainda muitos por estrear para essa estante

que ergueste no corredor como uma casa
nova. Trago portas abertas no coração:

se ainda não sabias, és muito bem vindo.




Maria do Rosário Pedreira in Poesia reunida




Destino, Almeida Garrett


Destino

Quem disse à estrela o caminho 
Que ela há-de seguir no céu? 
A fabricar o seu ninho 
Como é que a ave aprendeu? 
Quem diz à planta «Florece!» 
E ao mudo verme que tece 
Sua mortalha de seda 
Os fios quem lhos enreda? 

Ensinou alguém à abelha 
Que no prado anda a zumbir 
Se à flor branca ou à vermelha 
O seu mel há-de ir pedir? 
Que eras tu meu ser, querida, 
Teus olhos a minha vida, 
Teu amor todo o meu bem... 
Ai!, não mo disse ninguém. 

Como a abelha corre ao prado, 
Como no céu gira a estrela, 
Como a todo o ente o seu fado 
Por instinto se revela, 
Eu no teu seio divino . 
Vim cumprir o meu destino... 
Vim, que em ti só sei viver, 
Só por ti posso morrer. 

Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'


1. Desde o início do poema até ao verso 12, repete-se um mesmo processo estilístico: a pergunta retórica.
Refira o efeito de sentido que esse processo estilístico produz.

A pergunta retórica, que, portanto, não é para ser respondida, produz, pela sua insistência (vv. 1 a 12),um efeito de convicção: a resposta às sucessivas interrogações, que seria, por exemplo, «ninguém» (v. 16), sublinha a predestinação que parece conduzir todas as coisas e todos os seres, e cuja força é revelada pelo «instinto» (v. 20).

2. Comente a importância das referências a elementos da natureza feitas ao longo do poema.

As referências a elementos da natureza, isto é, à «estrela» (v. 1), à «ave» (v. 4), à «planta» (v. 5), ao «verme» (v. 6), à «abelha» (v. 9), ao «prado» (v. 10), à «flor» (v. 11) e aos seus movimentos ou modos de
vida funcionam como a demonstração de uma capacidade, intrínseca a todos os seres, de serem fiéis ao seu destino. Através destas referências, pretende-se transmitir a ideia de espontaneidade e de inevitabilidade do amor que o «eu» sente, como se esse amor fosse uma força da natureza, independente da sua vontade.

3. Indique os traços principais do «tu» a que o sujeito lírico diretamente se dirige, fundamentando a resposta em elementos do texto.

O «tu» é o objeto do amor apaixonado do «eu», num sentido que parece indicar a total identificação entre ambos. Do «tu» é destacado um elemento concreto, os «olhos» (v. 14), que são o que melhor pode caracterizar a intensidade dessa identificação. Além disso, o adjetivo que marca a expressão «no teu seio divino» (v. 21) é um traço da qualidade única e sagrada de que o «tu» se reveste aos olhos do «eu».

4. Explicite as relações que se podem estabelecer entre o título e o conteúdo do poema

O título do poema, «Destino», palavra que depois é repetida no verso 22, desta vez associada ao amor que o «eu» sente, é a resposta às perguntas retóricas colocadas na primeira parte do poema, resposta reforçada
pela palavra «instinto» (v. 20), extensiva a «todo o ente» (v. 19). Sentido essencial do poema, o «Destino» marca uma visão romântica da natureza, animada por uma ordem perfeita e predeterminada, e do amor humano como parte dessa harmonia.

Relações intertextuais

Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre flores?

Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores.

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folgas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira:

Que alegre campo! Que a manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se não te vira
Mais tristeza que a morte me causara.

Bocage




A F., favorecendo com a boca
e desprezando com os olhos

Quando o Sol nasce e a sombra principia,
A doce abelha, a borboleta airosa
Procura luz ardente e fresca rosa,
Que faz a Terra céu e a noite dia.

Mas quando à flor se entrega, à luz se fia,
Uma fica infeliz, outra ditosa,
Pois vive a abelha e morre a mariposa
Na favorável rosa e chama impia.

Fílis, abelha sou, sou borboleta
Que com afecto igual, com igual sorte,
Busco em vós melhor luz, flor mais selecta,

Mas quando a flor é branda, a chama é forte,
Néctar acho na flor, na luz cometa,
A boca me dá vida, os olhos morte.

Jerónimo Baía
  
Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as penas ordenando,
O verso sem medida, alegre e brando,
Espedindo no rústico raminho.


O cruel caçador (que do caminho
Se vem calado e manso desviando),
Na pronta vista a seta endereitando,
Lhe dá no Estígio lago eterno ninho.  


Destarte o coração, que livre andava
(Posto que já de longe destinado),
Onde menos temia, foi ferido.


Porque o Frecheiro cego me esperava,
Pera que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.


Camões