Vergílio Ferreira


Filipe Acosta



"Inventa a eternidade na simples comoção de olhar uma estrela.

Basta que a olhes pela primeira vez, depois de a teres olhado inúmeras vezes.

E, então, não precisarás de nenhum Deus que te ponha a mão no ombro e diga estou aqui. Uma estrela espera-te desde toda a eternidade.

Procura-a.

E vê se não a perdes durante a vida inteira.

A tua estrela pode não estar no céu.

Põe-na lá."  


                                      Vergílio Ferreira in Pensar    

Feliz Natal!

 Noemí Villamuza




Gramática do português contemporâneo
 
ler
é também uma maneira de premeditar a solidão,
um modo de aproximar a alma da sintaxe
como se também o ser se ordenasse
em sujeito
predicado e complemento directo.
Alexandra Monteiro

Dia de Natal, António Gedeão


Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão

Teste Fernão Lopes

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O RETRATO , Ana Luísa Amaral


O RETRATO
Ora esguardae,
escreveu o outro,
quando dele falou nas suas crónicas.
 Eu digo que se esguardardes demais
pondes o vosso coração em perigo,
porque ficar eis a saber
o que talvez não vos seja de interesse,
as verdades que tínheis como certas.
Esguardar é considerar,
e eu não sei se deveis considerar verdadeiramente a sua história
ou se não é preferível que vos fiqueis junto aos mitos,
às histórias que se contaram e o fizeram grande,
a ele, que tal não se considerava
depois da morte daquela que amava.
 
Basta olhar para aquele seu retrato
e para a angústia nos seus olhos.
 Ora esguardae essa angústia
sem esguardardes a história como vos foi contada.
Talvez então o muimento de alva pedra
comece a fazer outro sentido,
e, com ele, os bichos que o povoam:
as caras dos algozes?, as faces
dos tempos que corriam?, cheios de doenças,
de febres, tempos assustados.
Esguardae esse retrato:
a sua barba, a mão que ali foi posta a segurar a espada,
a capa, tão vermelha, sobre os ombros.
 
Dele falaram e da sua amada.
Esguardae o seu olhar, cuidadosamente,
e vereis que é um olhar enrouquecido pela loucura.
Pensará nela?
Não são as dobras em relevo
da tinta de óleo do retrato
que poderão dar-vos a resposta.
Só a memória dessas dobras e da tinta espessa
saberia dizer-vos se era nela que ele pensava,
 mas a essa memória não tendes vós acesso.
Nem às memórias
de quem pintou o retrato,
ido há tanto tempo como o seu modelo.
Não sei se eu não terei tido
uma pequena entrada nessas memórias,
eu, seu escudeiro, que o servi
e ouvi tantas vezes os gritos entre ele e seu pai.
Eu, que vi, replicados em espelho,
amores seus iguais ao primeiro amor,
e de como desejou erguer noutros lugares túmulos
 tão belos como aquele que erguera
em honra da morte, branco e belo.




É  o primeiro amor o mais gentil,
O melhor sempre?
 Como dizer do ponto central da paixão,
quando mente e corpo,
recuados antes e protegidos pelo terror daperda,
se deixam enfim conquistar?
Teria o pintor pensado nisto
no instante em que prendeu aquele olhar?
Entrei várias vezes na sala,

levando vinho e bolos,
mas o pintor estava sempre de costas para mim.

E eu pousava a bandeja na mesa
e afastava-me, sem uma palavra.

Nunca me chamou para junto de si, o meu senhor,
nos dias em que posou para o retrato.
Nem nunca teve comigo confidências
sobre aquela que perdera,
 por obra de seu pai.

Mas eu, porque o servia todas as manhãs
e o acompanhei durante tanto tempo, e à sua dor,
eu conhecia-lhe os tons,
as paletas de cor por detrás da íris dos olhos,
as formas mutantes
conforme as jardas do sofrimento.

E juro que o pintor
soube resguardar o seu olhar.
Como se fôsseis presente
podeis agora esguardá-lo.
E meditar sobre ele.


                                                                              Ana Luísa Amaral, in Vozes