A operação, de Adília Lopes


A operação

As pessoas podem entrar para me visitar
podem ver-me
ler
entrou a minha tia
esta gaveta não tem chave?
ah está aqui porque é que a escondeste?
pareces daquelas pessoas que tem o pé-de-meia
dentro do colchão
e uma falta de confiança
nas outras pessoas fechar as gavetas
à chave ah é uma chave de vidro
e daquela caixinha? gostas de fazer caixinha
entrou o meu padrinho
começou a revistar as gavetas isto é valioso?
as criadas podem roubar
não devias deixar andar assim isto
por aqui para que queres
tantas caixas? mais valia
fazeres colecção de selos
ocupava menos espaço
tudo isto era bom mas era
para o lixo quem vir isto
vai pensar que és uma trapeira
dessas que andam a mendigar pelos caixotes do lixo à noite
quando é que o meu padrinho acabará
de fazer a sua rusga?
tive um pesadelo esta noite
quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho?
as paredes estavam escancaradas
sonhei que almas perversas
tinham partido as caixas
tinham enchido as gavetas da roupa
com salamandras
li isto no “Jornal do Incrível”
e tinham vindo escrever com outra letra que não a minha
outras coisas que não as minhas nos diários
que eram meus
Ah não poder gritar
(fui ontem operada a garganta no fim
a enfermeira mostrou-me as amígdalas
estavam numa bandeja de inox)


in O decote da dama de espadas (romances) de Adília Lopes

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