Antero por Eduardo Lourenço


«No quadro da cultura portuguesa, o papel e o significado da Geração de 70 ultrapassam em muito o que é natural esperar de uma manifestação de carácter ideológico, literário ou cultural. O que começou em 1865 como querela banalmente literária entre «anciens et modernes», no caso, entre poetas representativos de um romantismo estereotipado e já culturalmente inócuo e uma nova geração imbuída de pessimismo poético ou filosófico, admiradora de Gérard de Nerval, de Baudelaire, mas também do utopismo profético do autor da Légende des Siècles, adquiriu em 1870, ano-charneira do século, uma dimensão política e ideológica, caucionada pela obra e pela figura de Proudhon e mais tarde de Marx e Lassalle. Sob o nome de «socialismo», uma ideologia que se apresentava como leitura crítica do passado europeu e arma revolucionária, durante algum tempo encarnada pelo poeta e filósofo Antero de Quental, fazia a sua aparição num país sem proletariado, com uma massa de analfabetismo extremo, alheia ainda a qualquer possibilidade de organização social e, ainda mais, de revolução social. Visto de hoje, e num grau quase onírico, esse movimento de uns poucos intelectuais, impotentes politicamente, mas excepcionais como poetas, polemistas, historiadores, romancistas, existia pelo seu próprio extremismo. Podemos dizer «gauchismo». Só o explicava a onda revolucionária europeia provocada pela Revolução de 1848 (ano do Manifesto de Marx), que ecoara em Francoforte, em Viena, em Sampe-tersburgo ou em Barcelona, como em Lisboa, através dos nossos primeiros adeptos da Associação Internacional dos Trabalhadores.
Pela primeira vez, uma doutrina assumidamente subversiva encontrava uma dimensão cultural entre nós. Mas não é a este título que a Geração de 70 ocupa o centro da mitologia cultural portuguesa, pelo menos na perspectiva por ela encetada e vivida em seguida, quase sem excepção, como sendo a da própria modernidade. Pela mão do seu líder incontestado, Antero de Quental, em 1871, na abertura das «Conferências do Casino», série de palestras dedicadas ao exame crítico dos mais candentes problemas nacionais - ou como tais tidos pelos seus organizadores -, apresentou aos seus ouvintes uma versão do passado português destinada a explicar ao País as causas da nossa decadência. (...)
Antero assume a pose do profeta da revolução, melhor, do seu apóstolo, perfeitamente consciente do quixotismo que a sua crítica radical do passado nacional representa, mas não menos convicto de que a revolução que anuncia e de que espera um novo Portugal é de essência religiosa. A sua célebre conferência termina assimilando o socialismo ao cristianismo do mundo moderno: «o cristianismo foi a revolução do mundo antigo: a revolução não é mais que o cristianismo do mundo moderno. (..)
O lugar de Antero é o buraco negro de uma cultura nacional imaculada. Ele mesmo recusou esta vista directa sobre o abismo que acabou por devorá-lo. O seu suicídio não é uma peripécia subjectiva, nem uma tragédia sentimental ou cultural, à Werther ou Chatterton, é o último acto de uma vida que desejou tocar a face de Deus e não a encontrou. Em vez dela, um vazio que desde então, das maneiras mais imprevistas, se infiltrou no imaginário nacional ou lhe serviu de repoussoir. O acontecimento--Antero é a primeira expressão, entre nós, do que na cultura ocidental se designará como «morte de Deus». Na verdade, só depois dele tem sentido perspectivar o movimento da cultura portuguesa em termos de «dramaturgia». Antero foi o primeiro e, até hoje, inultrapassável encenador de um drama que antes dele só por intermitência filtrava do fluir tranquilo da nossa cultura (Camões, Garrett) e desde então passou a haver, como Pascoais e Pessoa diversamente o mostraram.

Eduardo Lourenço, in PORTUGAL COMO DESTINO seguido de MITOLOGIA DA SAUDADE .

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