E ARRANCAR CORAÇÕES: UM ACTO INÚTIL | Ana Luísa Amaral

"Pedro e Inês", de Olga Roriz, pela Companhia Nacional de Bailado

[Mais um texto onde Ana Luísa Amaral procede a uma revisitação intertextual do cânone amoroso estético cultural ocidental. A poeta continua aqui a resgatar vozes que foram condenadas a ser apenas mudas musas, , laborando numa tradição que vem de Elizabeth Barrett Browning (1806-1861), Christina Rossetti (1830-1894) e (sempre) Emily Dickinson (1830-1886). Laura, Beatriz e Catarina/Natércia surgem como símbolos amordaçados das musas que alimentaram os poetas, mas que não puderam nunca dizer de si. De Beatriz apenas sabemos o que Dante louvou no seu caminho das trevas para a luz, colocando-a no mais alto grau de pureza: a ligação entre o divino e o humano. Laura é a representação de mulher que vive na memória de Petrarca: Laura vive enquanto a sua lembrança consome o poeta. Beatriz e Laura transformam-se em abstracções incorpóreas. Camões, seguindo de perto o modelo petrarquista, recria um amor que vive na impossibilidade de conciliar corpo e espírito. Neste poema revisitamos Pedro e Inês e a história reescreve-se: «Inês é viva»]


E ARRANCAR CORAÇÕES: UM ACTO INÚTIL


«Mas é assim o amor», dizia ele, muitos anos
depois, ela já salva por cena intempestiva
de fidalgos e carta de perdão.
Poupados os seus filhos, descansara também.
Mas a paixão por ele era tão longa (roda de
circunferência em tomo de galáxia a não chegar,
vulcão de luz e assombro), que acreditar
no que ele lhe dizia: uma tarefa larga

Estava-se, recordemos, em século ainda
geocêntrico, de pensamento organizado
em escalas, e o que ele lhe falava devia ter
sentido para ela. Mas a paixão sentida era
tão longa (linha de circunferência em tomo
de galáxia a não bastar) que o excesso de sentir
se diluía no que era mais avesso: o dizer dele

«Pôr-me-ias agora», perguntou-lhe, «em esquife
ardente, e, como a uma viva, obrigarias aias,
cortesãos, a vir beijar-me os dedos como viva?».
Isto ela perguntou. E ele calou-se, interrogando
o tempo. «Inês é morta», ecoou-lhe de longe
um brado absurdo. «Inês é viva, aqui», ripostou ele,
a sua voz rasgando as pedras do palácio.

«Inês vive comigo há anos tantos e acordar
a seu lado: escala certa, e a luta foi tão longa
(roda de circunferência em tomo de galáxia
a não chegar) que há-de ser isto o amor.
E arrancar corações: um acto inútil."»
«E o que é o útil?», perguntou Inês –

Ana Luísa Amaral (Imagias)

Nenhum comentário: