A História do Velho Entristecido com a Vida | Miguel Rocha de Pinho [Prémio Literário Correntes d’Escritas/ Papelaria Locus]

Miguel Rocha de Pinho 


Mais um dia. Mais outro dia. Um atrás do outro, sem fim, sem começo, uma sequência tão repetitiva como a própria palavra. E é sempre este apartamento velho, esbranquiçado, como se já não vivesse cá ninguém há tanto tempo. E como era bom que isso fosse verdade. As nuvens movem-se como ontem, como anteontem, antes até. O céu está cinzento, choveu de noite, eu ouvi, não dormi nada. Estive a pensar, pensei muito. Olhei o relógio várias vezes durante a noite. E só cheguei a uma conclusão. É tarde. Mas ainda não é tarde demais.
Longos anos viu passar esta rua. Ainda era eu pequeno e jovem, sedento por aventura e brincadeira. Lembro-me tão bem dos agricultores que passeavam a foice e enxada pela rua, aliás, pelo caminho de terra, caminhando para mais um dia de trabalho. Eu brincava com os meus amigos, filhos de outros camponeses, alheios à podridão que estava a começar no mundo. Mas crescemos, todos crescemos, crescemos com o mundo e apodrecemos com ele.

É uma triste verdade, a vida. Passamo-la todos a fazer as mesmas coisas, ninguém consegue fugir às regras impostas pela sociedade. Coitados daqueles jovens que tentam ser diferentes e acabam humilhados em público. Coitados daqueles outros que seguem as regras sem perguntar e vivem numa aparente felicidade, apenas com as entranhas contorcidas na solidão. Estou cansado. Talvez devesse ter dormido.

Mas para quê? Talvez para ser feliz. Talvez só nos sonhos somos mesmo felizes, de outra forma não se utilizaria a expressão 'mundo de sonho'. Talvez se adormecesse, seria feliz. Pena que depois da dormida, há que acordar. A rua está silenciosa, ainda ninguém deu o ar da sua graça. Não que vá saber pelos olhos, a janela está fechada, estou na escuridão, a luz não entra aqui. Se bem que mesmo com a janela aberta, a luz nunca entra aqui. Este apartamento será para sempre escuro e enterrado em tristezas e solidão. Talvez devesse ter dormido.

A madeira está podre. Consigo senti-lo. Estes apartamentos estão velhos, demasiado velhos e esquecidos. Quem cá vive, não sairá mais de cá. E quem cá não vive, nunca cá entrará. São prédios repulsivos, feios, muito feios. Mas que interessa? Estou velho, velho e rude. Velho e, tal como estes prédios, esquecido. Ninguém sabe de mim, ninguém se lembra, só me vêem o corpo e os olhos, mas ninguém sabe nada. Estou cansado. Talvez devesse ter tomado mais um comprimido.

Malditos medicamentos. Só os jovens para inventar mais drogas para nos manter vivos por mais tempo. Só os jovens é que têm ideias destas, eles pensam que serão jovens para sempre, eles pensam que se se mantiverem vivos por mais tempo, poderão aproveitar mais a vida. Mas que vida? Chega a uma altura em que a vida deixa de se importar connosco. Ficamos velhos e enrugados, e a última coisa que queremos são medicamentos para ficarmos vivos por mais anos. Ficarmos esquecidos por mais anos, vivos de corpo, mortos de alma por mais tempo. E passar as noites desperto, a pensar. E a lamentar não ter dormido, na manhã seguinte. São tão ingénuos, estes jovens. Vão todos ser espezinhados, um dia, esmagados pelo alto poder do tempo. E nunca ninguém aprenderá com isso, porque nós, que os avisámos, já não estaremos aqui para lhes dizer 'eu avisei-te'. Talvez seja essa a única utilidade dessas drogas. Talvez. Talvez devesse ter dormido. Estou muito cansado.

Então, porque não durmo. Estou velho e cansado, tenho um longo dia pela frente, um longo dia que vai ser inequivocamente passado no café, a olhar os transeuntes por entre as vitrinas. Passar todo um dia, apenas com um café. E talvez um bolinho a meio da tarde. Mais tarde, voltarei para este apartamento que fede à velhice, estender-me-ei na cama com dificuldade e preparar-me-ei para outra noite passada a olhar para o despertador, a pensar. E amanhã será hoje, outra vez. E pensarei, tal como hoje, 'talvez devesse ter dormido'.
Está tudo mudado. As músicas são diferentes, os filmes são diferentes (não que saiba por experiência, que já não vou ao cinema há muito tempo), as pessoas estão diferentes, todo o mundo está diferente. E isso entristece-me. Onde já vão os dourados anos em que eu era jovem e tinha o mundo à minha frente, uma grande pilha de oportunidades estendia-se aos meus pés. Não aproveitei nada, fiquei parado, à espera que as coisas me caíssem em cima. Mas tudo secou rapidamente, nada tive, sozinho fiquei. Sozinho estou. E o dourado deu lugar ao cinzento. Tal¬vez devesse mesmo ter dormido.

Continuo aqui na cama. Sei que vou precisar de muito esforço para conseguir sair dela, estou velho e não tenho ninguém para me ajudar. Desapareceram todos. Não que tenha ido atrás de alguém, não. Sou talvez demasiado orgulhoso para o fazer. Estou cansado, agora. Agora estou velho e perdido. E o tecto qual¬quer dia desaba sobre mim. Desde que não doa muito, não me importo. Estou triste. Desiludido. Tinha tantos sonhos em criança e nenhum deles foi cumprido. Estava longe de adivinhar que ia acabar num apartamento velho e podre, sem ninguém.

Tenho de sair daqui. Este ar pesado está a empurrar-me contra o chão e sinto tudo isto abafado. Vou mais uma vez, para o café, olhar pela janela, a vida do outro lado. Vou ser, mais uma vez, o primeiro cliente do dia. O primeiro, e não primeira vez, o único. Espanta-me como aquele café ainda não foi à falência. Sempre tenho onde estar, que não este apartamento morto. Como me custa sair desta cama! Já está, pronto. As minhas costas já não são o que eram, doem-me muito. Dor que vai com uns comprimidos. Talvez seja melhor levar mais alguns frascos para logo. Poderei precisar. Talvez, talvez.

Já não como nada há algumas horas, mas não tenho fome nenhuma. Já me sinto sem estômago, como se não precisasse de comer para sobreviver. Ou talvez como se não precisasse de sobreviver para comer. Está escuro, no quarto, mas para quê abrir a janela? Ninguém irá cá entrar, ninguém irá barafustar por não ter deixado entrar um pouco de ar fresco. Eu não preciso de ar fresco. Pelo menos, não hoje. Onde pus a bengala? Ah, aqui está. Vamos indo, então.

A porta está perra. Custa-me abri-la. Será que cairá se mandar um empurrão? Talvez não. Não, não caiu. E a porta está aberta. Já posso passar. O céu está muito nublado, lá fora, está mais cinzento que ontem. Vai chover mais hoje. Bem, dentro do café não chove, isso é certo.

Tenho de tomar as escadas, o elevador não funciona. Nem eu teria coragem de o usar, está tão podre como os prédios. Estas escadas parecem infinitas, tão difíceis de descer, tão difíceis de subir. Não se ouve nada, estranho. Já não é propriamente cedo, já deveria haver gente a sair de casa com pressa, em direcção aos seus trabalhos. Talvez seja fim-de-semana. Já nem sei, os dias são todos iguais. A rua está molhada, choveu mesmo durante a noite. Já só falta mais um piso. Estas escadas estão sujas, fedem a tinta. Andam a pintar o piso de baixo, váse lá saber porquê. Tentam reparar o irreparável, estes homens.

- Bom-dia, senhor. – diz um deles. Não, não é um bom dia, mas eles não saberão o porquê.

- Bom-dia… - a porta de entrada também está perra. Estes prédios qualquer dia vêm abaixo, de tão velhos que estão. E esta não consigo abrir. Talvez um pouco mais de força. Não, não consigo, maldita porta que decidiu não abrir.

- Deixe-me ajudá-lo. – ofereceu um dos pintores. O rapaz lá empregou um pouco mais de força, força tal que a velhice já não me traz. Conseguiu-a abrir.

- Obrigado.

- Estes prédios já estão um bocado maltratados, não? – que perspicaz, este rapaz.

- É o preço da velhice.

Abandonei o edifício, entristecido. Lá está a rua, triste como eu, cinzenta, porca. Um jornal voa ali mais ao fundo, está vento, está frio. Talvez devesse ter ficado na cama, sempre estava mais confortável. Talvez devesse era ter dormido, que estou cansado e os meus olhos estão pesados.

Lá está o café. Vazio, como era de esperar. Está a ficar cada vez mais frio cá fora, é melhor entrar. A televisão está desligada, o empregado está a limpar copos, está tudo muito silencioso hoje. Cheira a lavado aqui. As cadeiras ainda estão sobre as mesas; o café abriu há poucos minutos.

- Bom-dia, senhor! – exclamou o empregado, cheio de energia.

- Pronto para mais um dia quase sem trabalho? – este café está condenado a fechar, nunca cá vem ninguém.

- Vamos sobrevivendo. O senhorio tem um café noutra rua e, pelos vistos, lá, aquilo está a dar boa massa. Disse-me ele que só não fecha este, porque o estima muito. Tem boas memórias deste lugar. Mas bem, é o seu café de sempre? – é. É o meu café de sempre. Boa escolha de palavras.

Estes prédios são tão feios por dentro como por fora. Detestáveis, horrorosos. Alguém abriu a janela. Ah, é aquela rapariga. Completamente convencida de que é grande, trata os outros como se fossem lixo. Aposto que neste momento pensa que eu me estou a derreter a olhar para ela. Precisa urgentemente de cair na realidade, vai sofrer tanto aquela rapariga.

- Cá está o seu café.

- Obrigado, rapaz.

Será que trouxe o papel? Lembro-me que o pus no bolso do casaco que tenho vestido, ontem antes de ir para a cama. Sim, ainda está aqui. E também cá estão os comprimidos. Primeiro, saboreio o café.

Este mundo está como estes velhos prédios. Irreparável. Mas teimam em deitar mais remendos onde não dá. Este café está bom, devem estar a experimentar novas marcas. E lá está a vida a correr com o vento, as nuvens cada vez mais negras, vai chover hoje. A rua está toda suja, este é o fim do mundo, com certeza. Sentirei falta deste café, embora seja apenas a primeira vez que o provo. Estou cansado. Vai chover mais. Não faltará muito.

Eu aqui estou. Cansado da vida, farto da espera. Submeter-me à velhice é tão mais doloroso que a outra alternativa. Tenho o papel. Tenho os frascos. Tenho a decisão.

- Rapaz, tens uma caneta?

- Sim, sim, espere só um segundo. – tenho todo o tempo do mundo. – Aqui está.

- Obrigado.

Começo a escrever.


Rapaz,

Não mereces isto, nem sei o teu nome, nem sei nada sobre ti. Mas és a única pessoa que me tem acompanhado durante esta velhice nojenta e dolorosa, pelo que sinto que saberás o que fazer. Estou cansado desta vida cinzenta, cheia de nuvens que não desaparecem, de prédios rotos a desmoronar, de pessoas imbecis com a mania da superioridade. Já não sou ninguém. Não que alguma vez tivesse sido, mas ao menos já tive a oportunidade. Agora nem isso. Agora nem isso.
Rapaz, não te assustes. Sabes o que fazer, tens esta carta, não te assustes, não fujas. Vou deixar esta carta em cima da mesa, junto com o frasco vazio.

Rapaz, obrigado pelo café. Estava muito bom, hoje.

O Velho e teu único cliente.

Dobro o papel. Sorrio levemente.
Está quase.
Pego no frasco, despejo o seu conteúdo na boca. Custa-me a engoli-los, mas consigo.
Agora só tenho de esperar.

Como este café está bom!


Miguel Rocha de Pinho

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu amei o que acabei de ler , está tão pormenorizado . As decisões do Idoso ao longo da sua vida , os seus sonhos mal conquistados . Tenho 15 anos e por vezes ponho-me a pensar o que será de mim daqui a uns anos , será que vou conseguir aquilo que por tanto luto ?, será que vou chegar a algum lado ? Não sei , acho magnifico o modo de como as pessoas de hoje em dia são tão egoístas que não pensam naquilo que poderão ser no dia de amanha e acabam por inferiorizar os outros (..)
Só acho que uma pessoas nunca devia de desistir da Vida , sendo velho ou Jovem , temos que aproveitar até ao ultimo segundo . Neste caso o Senhor Idoso admitiu ser orgulhoso por isso não gritava por ajuda mas eu acho que em "nosso" caso deveríamos gritar sempre por ajuda ! Enfim.. Já nem sei ao certo o que estou a escrever ,por isso ..
Obrigada pelo excelente texto ,amei-o completamente (:
Beijinho *