Mário Dionísio





   A primeira vez que a vira fora de noite, à saída dum baile. Já a conhecia, sim, mas nunca a vira. Tudo era medíocre, como sempre, naquele baile, com as mães e as tias sentadas a toda a volta da sala, na segunda fila de cadeiras, as filhas na primeira, os rapazes às portas, prontos para o assalto mal a orquestra recomeçasse, as mães vigiando, as tias vigiando, avaliando, impedindo ou estimulando os namoros possíveis, os casamentos prováveis. O objectivo dos rapazes não era precisamente o mesmo. Mas tinham de aceitar as regras do jogo se queriam chegar a tempo às peças mais cobiçadas, sobretudo nos tangos, dançados à media luz, quando a sala ficava repleta e toda a vigilância se tornava praticamente inviável.
 No meio daquela gente alegremente entregue a esse jogo dissimulado de oferta e de procura, Augusto surpreendera, de súbito, o sorriso de Matilde, como quem estivesse a olhar por um binóculo uma paisagem sem interesse e descobrisse um pormenor inesperado com uma nitidez fascinante. Em volta, tudo continuara desfocado, os lustres, as cadeiras, as pessoas que mal conhecia e que eram a mãe de Matilde, as amigas de Matilde, as mães das amigasde Matilde. Dançaram uma vez quase no fim da noite. E falaram. De quê? Não interessava de quê. Só o tom, a descoberta, o alvoroço interior, interessavam. E desceram a escada juntos, um pouco atrás de Ana Soeiro e das amigas, que nessa altura só estavam realmente preocupadas com arranjar um táxi. Atrás de Ana Soeiro e das amigas, degrau a degrau,demorando a separação. Atrás de qualquer coisa que nascia.
     Era já madrugada. Os candeeiros apagavam-se nesse instante e do cimo dos prédios caíam molemente os primeiros bafos duma claridade ainda baça. As senhoras mandavam parar táxis, despediam-se. E a luz indecisa prendia-se nos cabelos, nos olhos, e no sorriso de Matilde. Tinha um lenço azulado ou esverdeado, transparente, em volta dos cabelos que se despenteavam à aragem da manhã próxima. Viu-a entrar no carro sem lhe dizer mais nada. E guardou para sempre, emoldurados pela janela de vidraça descida, esses cabelos
que fugiam do lenço transparente, esses olhos na sombra, esse sorriso.

Mário Dionísio, «O Corte das Raízes», in O Dia Cinzento e Outros Contos, Lisboa, Publicações Europa-América, 1978

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