Quando as irmãs no Carnaval | Adília Lopes

 Carnaval sur la plage, Ensor

Quando as irmãs no Carnaval
(sobretudo no Carnaval)
iam a bailes
e ela ficava em casa
porque não a tinham convidado
escrevia no diário
a verdadeira vida está nos bailes de Carnaval
a que as minhas irmãs vão
e quando uma noite num baile de Carnaval
a que as irmãs lhe pediram que fosse
mascarada de órfã
ela ficou sentada entre um espelho e um reposteiro
a ver as irmãs dançar
pensou
quem me dera estar no meu quarto
a escrever no meu diário
perdi o hábito de escrever no meu diário
«gostava de dançar»
sentiu uma pontada no joanete do pé esquerdo
(um joanete minúsculo
mas em todo o caso um joanete)
e descalçou o sapato com o outro sapato
as irmãs apareceram-lhe todas de repente
já com os abafos vestidos
e ela na atrapalhação de não ficar para trás
esqueceu-se do sapato
debaixo da cadeira
era um sapato de salto raso
e de sola fina
não se dava muito pela falta dele
quando ela deu pela falta dele
ainda estava na escada
mas por acanhamento
não voltou atrás
voltou no dia seguinte
a uma hora a que só podia ver as criadas
(que a intimidavam mais que a dona da casa
mas bem menos que as filhas da dona da casa)
desculpe vir a esta hora
mas acho que deixei cá ontem à noite
um sapato
e as criadas tiveram tanta pena dela
à vista do sapato
que a levaram para a cozinha
e lhe deram leite-creme e pãezinhos doces
a mais velha embrulhou com muito cuidado
o sapato
e ela despediu-se das três com um aperto de mão
desceu pela escada de serviço aliviada
com o embrulho debaixo do braço
mas ouviu uma risada para os lados da cozinha
encolheu os ombros
o sapato tinha custado uma fortuna
era italiano de pelica

Adília Lopes

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