O FUTURO | Maria Isabel Barreno


O FUTURO

Ela sujava uma faca, lavava-a logo. Tentava por esse meio evitar o trabalho que t eria, no futuro. Assim que qualquer pingo, qualquer cinza, caía, ela limpava logo. Mantinha a casa impecável, imaculada – na virgindade de um não-uso aparente. Sobre todo o uso real que a casa tinha, com família de quatro pessoas, ela tecia sem parar essa consistente teia de virginal recomeço. Tudo com o fito de manter o futuro limpo: que nenhuma tarefa monstruosa, nenhuma montanha de gordura e de poeira a aguardasse, medonha, num côncavo do porvir. Nesse futuro ela esperaria, sentada, com as mãos no regaço, os grandes acontecimentos – enfim! – da sua vida. A graça das grandes aventuras só poderia chegar abrindo-se-lhe um tempo, depois de todas as tarefas cumpridas, um tempo de repouso num espírito despreocupado.

Por incrível que pareça, esse tempo chegou. Um dia, ela descobriu-se sentada numa cadeira, sem nada que fazer. Os filhos haviam já deixado a casa, o marido morrera. Ela estava só. Conquistara o futuro. Todas as tarefas estavam definitivamente cumpridas, e ela estava disponível para os grandes acontecimentos. Ficou transida de medo vendo à sua frente um enorme vazio: todas as energias do futuro haviam sido gastas em cada presente que ela vivera.

 Maria Isabel Barreno [Contos analógicos]

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