M. S. LOURENÇO
OVÍDIO, AMORES; I, 5
A tua língua tem a consistência da rosa
e o sabor da madrugada.
Ergo-a com a minha em direcção ao céu
e voas no interior da minha boca.
Mordes os meus lábios
e ficas com a boca entumecida e plena.
Se abres a boca deslizo na língua até à garganta:
e sou a loba branca que vem morrer à praia.
Percorro o teu ouvido
como o mar explora as grutas;
procuro nele os búzios, as pedras,
as algas da tua história.
No meu peito as tuas mãos deslizam
e vêem nele uma superfície castanha,
um velho espelho chinês;
mas no teu peito as minhas mãos suscitam
a escultura e a música:
fazem nascer o volume amigo da terra,
os primeiros sonhos da tarde.
Na minha boca ele é manso:
oiço nele a água, a cor do ouro, o silêncio.
A tua pele está agora chegada ao meu rosto
leio nela uma mensagem.
Se sinto nas minhas mãos a curva das tuas coxas,
a grande baía azul do teu ventre descansa;
se me encosto na almofada,
as tuas pernas dobram-se em ângulo recto.
As mãos sobem até ao joelho e descem, depois,
até se imobilizarem na grande rosácea aberta do teu ser.
A minha mão toma agora a forma da ogiva
e lê nas estalactites aromáticas do teu ser
as inscrições e os símbolos que me transmites.
Repouso com a cabeça entre os teus pés
e aperto nos meus a tua cabeça.
Nas tuas mãos sou um unicórnio livre:
elas falam de todo o amor deste mundo
através dos seus cinco sinos.
Quando as tuas mãos guiaram o grande chifre fálico
nas espaçosas paisagens do teu ser
os cisnes espalharam-se sobre o lago
batendo com a cauda.
(in «Variações sobre um Corpo»,
Antologia de Poesia Erótica Contemporânea,
Selecção e Prefácio de Eugénio de Andrade,
desenhos de José Rodrigues,
Editorial Inova/Porto, 1973)
M. S. Lourenço (1936 - 2009)
Manuel António dos Santos Lourenço (Sintra, 1936). Conhecido como poeta e ensaísta e Director da revista Disputatio, especializada em estudos de filosofia analítica. Formou-se em Lisboa e Oxford. É professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, obtendo o seu doutoramento, com uma tese sobre Wittgenstein - A Espontaneidade da Razão: A Analítica Conceptual da Refutação do Empirismo na Filosofia de Wittgenstein, em 1980 (editada em 1986) - foi docente em universidades inglesas, norte-americanas e austríacas. Manteve residência académica fora do país (Oxford, 1965-72; EUA, 1972-80; Innsbruck, 1983-84). É Autor de uma obra de iniludível pendor filosófico, pouco divulgada e dificilmente catalogável, dotada de humor, gnosticismo e nonsense. Grande parte dos seus textos ensaísticos, avulsamente publicados em revistas da especialidade, pode ser lida à luz das correntes contemporâneas do pensamento anglo-saxónico. Fora do âmbito dessas publicações, encontra-se colaboração de sua autoria na revista Colóquio-Letras e no semanário O Independente. Entre outras obras menos conhecidas (de Guardini, Guitton, Kneale, etc.), traduziu e prefaciou o Tratado Lógico-Filosófico, de Ludwig Wittgenstein, bem como O Teorema de Gödel e a Hipótese do Contínuo, de Kurt Gödel. As traduções e os livros didácticos de filosofia, assim como Pássaro Paradípsico, vêm assinadas por Manuel Lourenço, para além do seu habitual M. S. Lourenço. (
DAQUI)
M.S. Lourenço era pai da bailarina Catarina Lourenço e do escritor Frederico Lourenço.