LAMINAGEM, Joaquim Manuel Magalhães


LAMINAGEM
 *

Um país agora este imenso aterro
teve alguma vez colinas e montados
onde o olhar demorava, adormecia
e seguia uma alegria viandante?
Ou gente que chegasse a qualquer mar
de que não quisesse logo fugir?
Só o pastoril decrépito o suspirava.
Teve o que todos tinham, em quantidade escassa,
até cobrir-se de desterro e de ilegais
e em pano de fundo esse lagar
de suicidas e débitos e primeiras segundas gerações.
A farpa de aceitação de quem consome
o sem destino da consciência.
Um país; tomou-se um assassino.
Vi verei os poucos verões até morrer
com este mundo de agressão em cerco.
Eu queria outro país, outro lugar
e tenho este infortúnio de leis amarrotadas
que não cumprem nem o violento nem o clandestino.

Um país de acasos,
um parque de campismo selvagem, um cimento apodrecido,
a música de sem abrigos nas estações de metro
enquanto não chegam comboios avariados
às plataformas de arte depredada,
um esboroamento sanguinário.
Até a linguagem que me ergueu
me sabe a sarro e a arrabalde.
Não fossem as obrigações que nos garrotam
nos fazem monstros com a lassidão de herbívoros
talvez pudesse ter o interior abandonado
e chegasse a faca do sol e me cortasse
noutra penúria mais serena.
Ainda que me digam que não olhe,
eu vejo. Ainda que me digam faz ginástica
e a depressão desaparece, nada me resolve.
Os ruídos sobem de qualquer lugar,
sintetizadores, martelos, desabamentos
uma percussão alheia a qualquer justiça.
Nenhuma janela que não fale
da construção administrativa dos piores instintos.
Todo o lixo do humano feito sebo
em qualquer lugar. Ainda que me digam
que vivemos em democracia eu digo
que não sei. Nem direitos nem deveres.
Um sem remédio ancestral.
Morreu a casa. Matou-a

O que lhe coube por contemporâneo
contra a placidez. Os autorizados
pelo conluio e pela votação.
Morreu a casa. E o pior
é não poder partir. Os laços
já se juntaram em anestesia. Preso
por outro amor, que não entende,
que não ouve como a casa já morreu.
A alguns vemo-los em qualquer pousio
Depois de fecharem as lojas
e nem se sabe o que vemos.
Aos balcões de cafés de azulejo,
com telemóveis pendurados nos cintos
e os cartões de crédito em dente na carteira.
Riem-se e batem nas costas
uns dos outros, entreolham e vigiam
se alguém diverso se aproxima
para largarem uma troça arcaica, e comem
com essa fome dos que não sofreram ainda
inquietações laborais ou crêem que virá
depressa o primeiro emprego. ..
Ao olhá-Ios melhor, aos seus afectos
de pessoal especializado em escuras economias
adicionais, vejo-os depois no verão.
Ao deus dará em todos os lugares,
em tendas velhas, em rulotes,
sabe-se lá onde vão cagar. E as mulheres
com os sinais exteriores da aspereza.
E as asas do inverno marítimo
auguram o aluimento.
Eu queria que na cabeça parasse
o furor de tudo o que tomba,
a derrota do dia a dia,
mas será sempre o cabide do tempo
quem estende as garras para nos alhear.
E os e-mail atravessam zonas sem remendo,
choças de tijolo com roupas a secar.
Assim armado o país.
As gentes em catástrofe deslocam-se,
deixam por testemunho o abandono e a inépcia.
Uma a uma, uma paisagem é trucidada.
Inchou a autarquias o país.
Atravessam-no a miséria e algum dinheiro
insolentes.
Um assassino
espreita outro assassino.
Os que destroem agora
podem exigir os torcionários que virão,
pois quem destrói pressente um chefe
e vai servi-Io.
E muitos hão-de sempre ser as vítimas
Da liberdade que consente a violência,
Da violência que não consente a liberdade.
Um assassino o país. Com as suas leis
Inúteis, a sua ordem por cumprir.

Só nos resta esperar então morrer?

Joaquim Manuel Magalhães, Alta noite em alta fraga, Relógio d'Água


* A laminagem é um dos Processos de alteração de forma por deformação em massa. (nota minha) 

O sentido da vida

Barbara Kruger

SENHORA DONA BURGUESA, Natércia Freire


SENHORA DONA BURGUESA

Senhora Dona Burguesa,
Dentro da sala fiando,
Com olheiras de tristeza,
Fia o sonho e vai sonhando.

Cantam pássaros na tarde.
Senhora Dona Burguesa
Recolheu as mãos e arde
Na romântica tristeza
De ouvir pássaros na tarde.
Já espreitou da velha torre

Campos e montes de Espanha.
Disse à nuvem: - Corre, corre,
Conta o mal que me acompanha.
De nada serve espreitar
Campos e montes de Espanha...

O silêncio envolve tudo:
Compõe teus olhos, Senhora.
Touca e manto de veludo,
Longos dedos cor de aurora.

Voz débil, de flor cansada,
No esquecimento da vida.
Dona Senhora do Nada,
Nas sombras adormecida.

Vieram carros buscar
Senhora Dona Burguesa,
Para a levar a passear.
A Senhora estava presa,
Imóvel, no seu lugar. . .

Já correra o mundo todo
Com olhos de navegar.
Enterrara-se no lodo,
E um anjo a fora salvar.

Depois subira às ameias,
De mãos atadas e nua.
- Altura? Brumas? Areias!
Deitem-na, morta, às areias.
Não há mais cópias de lua!

Senhora Dona Burguesa
Ouvia o Anjo falar,
Viva e morta, branca e presa,
Imóvel no seu lugar. . .

Enfeitara-se o coreto;
Logo à volta houvera danças.
Senhora Dona Burguesa
Levara vestido preto
E laços pretos nas tranças.

Levara vestido justo,
Justo no seio e nas ancas;
Vestido preto a acabar
No branco das pernas brancas.

Todos a viram calçada
Com ar de sonho e vigília.
Todos a viram sentada
Por entre a sua família.
Todos a viram modesta,
Sorridente e sossegada...

Senhora Dona Burguesa
Andou descalça na festa
E foi por todos pisada.

Quando a deitaram na cama,
Ninguém viu que se morria.
Tinha os cabelos em chama,
E à chama, ninguém a via. . .

Enfeitaram mais coretos,
Houve mais cantos e danças.
Mulheres vestidas de preto,
Com laços pretos nas tranças,
Endoideceram o espaço
De saudade e ventania,
De cantigas, de cansaço,
De pecado e de alegria. . .

(Senhora Dona Burguesa
No escuro se repetia...)

Quando viram que era morta,
Teve que ir a enterrar.
Não é preciso trazer
Carros para a passear.
Não subirá torres altas,
Para delas espreitar
Campos e montes de Espanha,
Brumas, areias do mar...
Não deverá ter impérios
Quem deles não sabe usar.
Só terá vestidos pretos
Para neles se amortalhar.

Senhora Dona Burguesa,
Viva e morta, branca e presa,
Imóvel no seu lugar.

Senhora Dona Burguesa
Sem história para contar!...

Natércia Freire in Anel de Sete Pedras (1952)

[HÁ COLARES QUE SÃO COLEIRAS], Bénedict Houart



há colares que são coleiras
há mulheres que são cadelas
certos homens, cães raivosos

os cães propriamente ditos
não foram para aqui chamados
embora metam o nariz em todo o lado
farejando coisas imaginárias
e, de resto, não falam, ladram
têm com certeza razão


Bénedict Houart .

Saramago, por Miguel Carvalho [A Devida…na VISÃO – XXXII]

(foto de Egídio Santos)


Do autocarro aos cafés, da coluna de jornal ao supermercado, o País pergunta: o Presidente da República deveria ou não ter ido ao funeral de José Saramago? Como nesta Terra de Pecado todas as interpretações são livres, também tenho uma: Cavaco não foi porque vai precisar dos votos dos que não leram O Evangelho segundo Jesus Cristo e consideraram Caim uma obra dos infernos. Ou seja, os mesmos votos que o inquilino de Belém terá perdido ao aprovar, contrariado, o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Como se sabe, o facto levou a Igreja portuguesa ao desespero. Desde esse dia, anda por aí, numa autêntica Viagem do Elefante, em busca de um candidato a Belém mais bafejado pela graça de Deus. E, já agora, pelo espírito das cruzadas, quem sabe.

Esgrimiram-se, entretanto, outras justificações para a ausência de Cavaco: que não queria ser assobiado, que não queria ser hipócrita, que já tinha feito o que deveria como chefe de Estado… Argumentou-se também que não poderia faltar às cerimónias pela dignidade do cargo que ocupa. Ora, Saramago, que nunca foi um Homem Duplicado e dado a ostentações e vénias pelos senhores de turno, dispensaria bem a presença do homem a quem nunca apertou a mão. Ele, que nem n´As Intermitências da Morte quis fazer as pazes com a figura suprema do Governo que o tratou como um Objecto, Quase, agradeceria, por certo, a ausência.

Claro que, para quem apenas guarda Pequenas Memórias do tempo que passa, a censura ao escritor em pleno cavaquismo deveria ser relegada para Os Apontamentos da História na hora da despedida. Discordo. Naquela altura, goste-se ou não, tiraram tudo o que resta a um escritor: o valor da liberdade de criação e a dignidade das suas palavras. E Provavelmente, Alegria, já agora. Cavaco era chefe de um ajudante de ministro que, a dada altura, se questionou: Que farei com este livro? E tão rápido pensou como decidiu: uma obra incómoda para “o património religioso dos cristãos” não seria candidata ao Prémio Literário Europeu. Disse. E fez. Ontem como hoje, sabe-se o quanto Cavaco é cioso desse património cristão, pelos vistos sagrado. Num Governo que chefiou, um escritor foi relegado para A Caverna e nem Os Poemas Possíveis lhe valeram. Ou alguém ouviu a Cavaco arrependimentos a propósito desse momento triste, qual Ensaio sobre a Cegueira num País em que o mal parece incurável?

Nem por isso, Saramago deixou de ser Levantado do Chão.

Até ao Nobel. E depois dele.

Saramago foi Deste Mundo e do Outro e o gosto, nestas coisas, fica à porta. Entendamo-nos: não preciso de concordar ou aplaudir tudo o que escreveu ou disse. Mas a verdade é que foi nele, mais luminoso e redentor, qualquer Ensaio sobre a Lucidez do que Todos os Nomes que lhe chamaram.

M.C.

Synecdoche, New York

Synecdoche, New York

Morada, Margarida Ferra




Morada

Habitamos
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois
de fecharmos a porta.

[Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, &etc, 2010]

Saber mais aqui [minuto 3´28´´]

Passado, Presente, Futuro [José Saramago]

Infantuna




Hoje, o Ler é Preciso! deu-nos música no Bonjóia...
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Curso intensivo de Jardinagem, Margarida Ferra [dois poemas]





Foi quando as palavras 
se prenderam na minha garganta,
uma a uma, abri a boca
e espalhei na sala, depois
do jantar, alguns bocados antigos.

Ouvi mais uma vez o sinal interrompido,
quando quis escutar-te por dentro
(outra vez este plano),
os algarismos, fixos
na minha memória, um a um.
As minhas mãos sobre ti já
discaram quatrocentos números iguais aos teu.
Não sei o que são frases, a única sequência
está nos meus dedos. Debaixo deles,
tu, mais uma década, e duas vezes
o sete antes da tua voz.

Estamos agora longe
e não sabemos ainda
que esse de quem te falo
é o próximo e o último.
Estamos agora longe, melhores.

Mas preferia não saber
nunca o teu lugar exacto,
coordenadas cegas,
dois números em qualquer cidade.

***


Ontem adormeceste, ainda
tínhamos as facas todas na boca
e três por abrir.
Ficou uma pousada
em equilíbrio geométrico
na linha dos lábios.
Não sei de quem eram
esses lábios onde
o gume imóvel não deixava sair
as palavras duras
e, mais tarde, os pesadelos.
Outras o cabo na minha mão,
esqueci-a  antes da última
costela flutuante
depois do coração.

De manhã éramos só nós, frios,
e a memória das cinzas na rua.

A terceira foi como se nunca tivesse existido.

Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, & etc, Lisboa, 2010.

(*) Margarida Ferra tem 32 anos e é licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou numa pizzaria, num jornal, numa galeria de arte contemporânea, em duas livrarias e no Palácio da Ajuda. É responsável, desde Janeiro de 2009, pela área de comunicação da Quetzal Editores [daqui]

Mulher a adias do texto - aqui



"Um escritor é um homem como os outros: sonha." José Saramago

"Um escritor é um homem como os outros: sonha."  



"Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais."


''Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira.''

[José Saramago na contracapa de Levantado do Chão]



“Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: «Não há mais que ver», sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”.

José Saramago, "Viagem a Portugal", Caminho - O Campo da Palavra, Lisboa 1995, p. 387.

Para Elisa...


O 4.ºA percorreu um caminho connosco.
Partilhámos leituras, partilhámos autores, partilhámos viagens, partilhámos cumplicidades, partilhámos o inefável, o intangível.
Momentos únicos que só a poesia pode ajudar a dizer.
Momentos únicos que só a poesia pode continuar a ajudar a dizer.
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Finalistas, 4.ºA


Um grupo, uma história....


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Festa de Finalistas | 4.º A




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Espelho Felino 2#




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Espelho Felino #1




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INFANTUNA


No âmbito do Projecto "Ler é Preciso!", o Agrupamento de Escolas do Cerco apresenta amanhã, pelas 20.30, dia 19 de Junho, o Festival Infantuna, na Quinta do Bonjóia.

Dos contos dos livros partiu-se para o verso e criam-se cumplicidades entre a TUNA Real de Bragança e alunos de vários Ciclos do Agrupamento de escolas do Cerco.  Amanhã, à noite alunos universitários, crianças do pré escolar e dos 1.º e 3.º Ciclos do EB juntar-se-ão num hino à leitura e à fantasia.



Riscava a palavra dor no quadro negro, Luís Quintais


VII

O esboço na página profunda
profunda do que não escreverei

é aquilo a que chamam de poema,
um mapa da cidade sem mapa,

da cidade irreal, da cidade cortejo da morte
e esquecimento, da cidade-fria-lâmina

acercando-sr do que está no vidro da mente
como um reflectido império antigo.

Para esse lugar de leveza ingrata,
transporto os impossíveis

que a biografia disse
necessários e urgentes.

Luís Quintais, in Riscava a palavra dor no quadro negro 

dois poemas de Manuel de Freitas

ESTUDOS CAMONIANOS

Estavas linda, Inês, e Camões
decerto não se importará
se eu disser que tinhas
posta no lugar a carne inteira
do meu futuro desassossego.

Aos poucos vai o corpo apodrecendo,
gentil da terra furor de que esquecemos
notícia e lastro, entretidos a morrer
por novas avenidas velhas
que em breve nos não verão mais,
apartados pela vidinha.

Mas estavas tu linda, Inês,
alheia ou talvez nem tanto
ao cego conhecido engano
que por vezes se dissipa
antes mesmo de existir.

Manuel de Freitas, A última Porta

A Última Porta 

GRAPEFRUIT MOON


Não é fácil resistir a tudo
o que nos roubam.
Tempo, memória, mundo.
Toleramos o insuportável
com insuportáveis venenos.
Até melhor ordem, se houver.

Noutras casas (lembro-me)
éramos mais, bebíamos
apressadamente a juventude.
Mas a vida — chamemos-lhe
assim — separa os que se juntam,
gosta de abismos fáceis.

Ao quinto ou quarto gin
(lembras-te?) deitávamo-nos
a sorrir para a estrelas,
sobre o pano gasto do bilhar.

A música era esta.
Perdemos quase tudo.
Manuel de Freitas

Camões, grande Camões, Bocage


Camões, grande Camões, quão semelhante
 
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! 
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, 
Arrostar co'o sacrílego gigante; 

Como tu, junto ao Ganges sussurrante, 
Da penúria cruel no horror me vejo; 
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, 
Também carpindo estou, saudoso amante. 

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura 
Meu fim demando ao Céu, pela certeza 
De que só terei paz na sepultura. 

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!... 
Se te imito nos transes da Ventura, 
Não te imito nos dons da Natureza. 

Bocage

Já Bocage não sou...

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se  me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

                                   Bocage

Bocage e o Nicola




Lugar de intercâmbio de ideias, debates literários e propaganda de opiniões, é assim que podemos definir um dos cafés mais frequentados do séc. XVIII – o Café Nicola.

O Café Nicola pertence a tipo de estabelecimentos com o seu charme característico, que marcaram diferentes épocas, foram ponto de encontro e, muitas vezes, de partida para movimentos sociais, políticos e culturais. Pela porta de Cafés como este, “A Brasileira”, o “Marare”, o “Martinho da Arcada”, entre tantos outros, passaram algumas das mais emblemáticas figuras públicas. Hoje, alguns vão subsistindo, constituindo-se como verdadeiros refúgios onde ainda se consegue imaginar o seu passado vibrante.


O Café Nicola é por excelência um dos cafés mais literários de Lisboa.. Existe desde finais do século XVIII. Fundado em 1787, no Rossio por um italiano, Nicola Breteiro, é um dos estabelecimentos mais antigos de Lisboa. É referenciado na «Gazeta de Lisboa» nesse mesmo ano e, o mesmo periódico, menciona uma «liquidação da loja grande de bebidas do Café Nicola», em Julho de 1794. Neste botequim vendiam-se cafés e refrescos e era um local frequentado por jacobinos e maçónicos.

Tendo como alcunha “Academia”, devido ao largo leque de intelectuais que o frequentavam, o Nicola teve um frequentador que se destacava por entre todos outros. Esse homem era Manuel Maria Barbosa du Bocage.

Um dos episódios mais engraçados da vida deste autor aconteceu precisamente à frente do Nicola: conta-se que um polícia lhe perguntou quem era, donde vinha e para onde ia, ao que o espirituoso poeta respondeu:

“Eu sou Bocage
Venho do Nicola
Vou p’ro outro mundo
Se dispara a pistola”.
 

Bocage

Louise Bourgeois (1911-2010) O último beijo da mulher-aranha





Um portento de pouco mais de um metro e meio de altura vindo lá de trás, do arranque do século XX, a atravessar a história do mundo contemporâneo para chegar até nós, ao novo milénio, com a pujança de um colosso sem tempo. 


O caminho todo. E, depois, o fim da viagem - ontem a mulher-aranha recolheu-se na sua teia de memórias e fechou os olhos: a artista plástica Louise Bourgeois morreu no Beth Israel Medical Center, em Manhattan, segundo anunciado ao princípio da tarde de Nova Iorque por Wendy Williams, directora do Louise Bourgeois Studio. Bourgeois faria 99 anos a 25 de Dezembro.

E, sim, os números enganam. Afinal, não tivemos tanto tempo assim para conhecer este ser raro. Pouco mais de duas décadas desde que em 1982 o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque organizou a primeira exposição retrospectiva de sempre da sua obra; apenas dez anos desde que a Tate Modern, de Londres, caiu como uma bomba no circuito expositivo internacional revelando ao mundo Maman.

Freud tinha explicado tudo sobre aranhas até nos depararmos com esta imensa representação da mãe a olhar-nos lá de cima, do alto das suas gigantescas patas de aço como quem avança Turbine Hall fora.

Bourgeois falaria num "símbolo de benevolência e protecção". A mesma candura com que aos 71 anos apareceu no estúdio de Robert Mapplethorpe para se fazer fotografar de sorriso rasgado dentro de um casaco de pêlo e com um poderoso pénis erecto enfiado debaixo do braço. Foi na mesma altura em que publicou um texto autobiográfico intitulado Child Abuse explicando como a mãe a usara como espia para obter informação sobre o caso de anos que o marido manteve com a governanta da família.

Foi em Paris, e há imagens deles todos juntos. Depois, à distância de Nova Iorque, para onde se mudou em 1938, Bourgeois continuaria sempre a partir exorcismo dos demónios do passado como motor criativo. 

Aranhas, falos de metal e látex, esfinges cobertas de seios, madeiras velhas de décadas e mármores acabados de polir, tecidos cozidos e recozidos, pequenos desenhos a vermelho, como sangue, roupas antigas (às vezes as dela, de criança), presenças disformes, por vezes grotescas, narrativas a aflorar o macabro: a obra de Bourgeois tece uma trama de densíssima carga emocional, um murro no estômago do ponto de vista dos subtextos psicológicos. Mas o humor está também sempre ali, ao virar da esquina. 

Há três anos, com nova exposição na Tate, a artista acedeu a criar um objecto para vender às centenas na loja do museu, um pequeno lenço bordado com uma frase: "Fui ao Inferno e voltei e, deixem-me que vos diga, foi maravilhoso."

Nessa altura, em entrevista ao Observer, diria: "Os meus trabalhos são retratos de uma relação e a minha relação mais importante foi com a minha mãe. Agora, como é que estes sentimentos por ela chegam até à minha interacção com as outras pessoas e como é que estes sentimentos por ela alimentam o meu trabalho, é [uma questão] tão complexa quanto misteriosa. Ainda estou a tentar perceber os mecanismos [desse processo].[Público]