Saramago, por Miguel Carvalho [A Devida…na VISÃO – XXXII]

(foto de Egídio Santos)


Do autocarro aos cafés, da coluna de jornal ao supermercado, o País pergunta: o Presidente da República deveria ou não ter ido ao funeral de José Saramago? Como nesta Terra de Pecado todas as interpretações são livres, também tenho uma: Cavaco não foi porque vai precisar dos votos dos que não leram O Evangelho segundo Jesus Cristo e consideraram Caim uma obra dos infernos. Ou seja, os mesmos votos que o inquilino de Belém terá perdido ao aprovar, contrariado, o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Como se sabe, o facto levou a Igreja portuguesa ao desespero. Desde esse dia, anda por aí, numa autêntica Viagem do Elefante, em busca de um candidato a Belém mais bafejado pela graça de Deus. E, já agora, pelo espírito das cruzadas, quem sabe.

Esgrimiram-se, entretanto, outras justificações para a ausência de Cavaco: que não queria ser assobiado, que não queria ser hipócrita, que já tinha feito o que deveria como chefe de Estado… Argumentou-se também que não poderia faltar às cerimónias pela dignidade do cargo que ocupa. Ora, Saramago, que nunca foi um Homem Duplicado e dado a ostentações e vénias pelos senhores de turno, dispensaria bem a presença do homem a quem nunca apertou a mão. Ele, que nem n´As Intermitências da Morte quis fazer as pazes com a figura suprema do Governo que o tratou como um Objecto, Quase, agradeceria, por certo, a ausência.

Claro que, para quem apenas guarda Pequenas Memórias do tempo que passa, a censura ao escritor em pleno cavaquismo deveria ser relegada para Os Apontamentos da História na hora da despedida. Discordo. Naquela altura, goste-se ou não, tiraram tudo o que resta a um escritor: o valor da liberdade de criação e a dignidade das suas palavras. E Provavelmente, Alegria, já agora. Cavaco era chefe de um ajudante de ministro que, a dada altura, se questionou: Que farei com este livro? E tão rápido pensou como decidiu: uma obra incómoda para “o património religioso dos cristãos” não seria candidata ao Prémio Literário Europeu. Disse. E fez. Ontem como hoje, sabe-se o quanto Cavaco é cioso desse património cristão, pelos vistos sagrado. Num Governo que chefiou, um escritor foi relegado para A Caverna e nem Os Poemas Possíveis lhe valeram. Ou alguém ouviu a Cavaco arrependimentos a propósito desse momento triste, qual Ensaio sobre a Cegueira num País em que o mal parece incurável?

Nem por isso, Saramago deixou de ser Levantado do Chão.

Até ao Nobel. E depois dele.

Saramago foi Deste Mundo e do Outro e o gosto, nestas coisas, fica à porta. Entendamo-nos: não preciso de concordar ou aplaudir tudo o que escreveu ou disse. Mas a verdade é que foi nele, mais luminoso e redentor, qualquer Ensaio sobre a Lucidez do que Todos os Nomes que lhe chamaram.

M.C.

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