Natal


‎- Que tens tu?
- Nada. É Natal.

Alexandre O’Neill

1 de dezembro, "Dia Mundial de luta contra a Sida"





A sua voz cortada dizia ao telefone
eu estou muito mal, tão mal, e eu queria
anunciar o seu terror; mas quem me escutava?

Via-lhe o ventre com a crosta coagulada
e a melodia do peito, um fluxo em chaga,
donde parecia fugir a massa celular.
Despedia-me do quarto de refugo.
Era melhor esquecer o que diziam terapia.
As supensões alienadas pelos tubos,
a tentativa de tudo o que é vão.
E fôra tanto de dia a dia e um amor
tão usual e nenhum esperara
nas poucas noites longínquas
esse rasgão hospitalar.

Desaparecemos. Com o tempo nenhum lamento.
Embora haja a dor e o terror
e haja até, quem o pode saber?, o amor.

Quando acordo olho primeiro a pele.
Tenho medo das manchas, dos lugares
dos gânglios, da primeira impotência.
Ouço o rancor das ondas
Que não pode findar.
E tenho de seguir os outros desejos,
aceito o amor que pedem os que vão
connosco a caminho desse animal aninhado,
o desaparecimento.

Tudo se transformou em história.
Um vírus que nos deixou
ao anjo sem guarda.

Joaquim Manuel Magalhães, em “Alta noite em Alta Fraga”


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I wake up cold (Thom Gunn)


I wake up cold, I who
Prospered through dreams of heat   
Wake to their residue,   
Sweat, and a clinging sheet.   

My flesh was its own shield:   
Where it was gashed, it healed.

I grew as I explored   
The body I could trust   
Even while I adored
The risk that made robust,

A world of wonders in
Each challenge to the skin.

I cannot but be sorry
The given shield was cracked,
My mind reduced to hurry,   
My flesh reduced and wrecked.

I have to change the bed,   
But catch myself instead

Stopped upright where I am   
Hugging my body to me   
As if to shield it from   
The pains that will go through me,
         
As if hands were enough   
To hold an avalanche off.

Thom Gunn, “The Man with Night Sweats” from Selected Poems. Copyright © 2009 by Thom Gunn. Reprinted by permission of Farrar, Straus and Giroux


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SIDA, de Al berto

"aqueles que têm nome e nos telefonam

um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz

arquivámos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas

acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração

e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola
e a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa

assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos mas não voltaram
a telefonar"

Al Berto, in Horto de Incêndio