Ainda bem que o natal acabou, Carlos Alberto Machado



Ainda bem que o natal acabou
logo que soaram as doze
descolei os lábios da mesa
vomitei as doçarias todas
para cima das notícias
que anunciavam a morte
algures onde o natal
é regado com sangue

e as rolhas das garrafas
são tiros cegos e certeiros
matam velhos e crianças
em natal ou em belém
para o ano haverá mais
se a dor aguentar até lá
nós aqui e eles no inferno
uma data é uma data
e é preciso comemorá-la

com sangue e com lágrimas
um dia os meus lábios
ficarão para sempre
agarrados à toalha de linho.

Carlos Alberto Machado, A Realidade Inclinada, Averno, 2003.

Dia de Natal | António Gedeão





Dia de Natal

Hoje é dia de era bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.


É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.

É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.


De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)


Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.


Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.


Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.


A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.


Ah!!!!!!!!!!


Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.


Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.


Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.


Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.


Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

Um conto de Natal de Alexandre O´Neill

 
A ideia de há muito que o andava a desassossegar. Depois dos primeiros ensaios de auto-apoucamento, Valério conseguiu um primeiro grande resultado: meter-se todo, todinho, numa das pernas (por sinal, a esquerda) do par de calças de sarja que comprara nas Confecções Nilo por trezentos convidativos escudos. Com voz-de-dentro-de-calça chamou a mulher:
- Ó Quinhas anda ver!
Quinhas levou um susto ao dar com uma perna de calça sustentando-se em pé sem, aparentemente, homem lá dentro. Logo se refez para fingir que não era capaz de o encontrar:
- Mas onde é que se teria metido meu Lèrinho!
- Aqui, sua estúpida! – desabafou-abafou a voz de Valério.
Quinhas continuava a brincadeirinha apalpando a perna vazia e bichanando:
- Lèrinho, Lèrinho!
Quando Valério, por fim, se libertou da perna da calça e retomou o seu (natural) ascendente, trocaram prazenteiramente insultos como só os casais muito unidos sabem trocar.
Quinhas seguira os exercícios de auto-apoucamento de Valério. Este começara a enovelar-se pelos cantos da casa: passara de seguida aos gavetões da cómoda e acabara por ser encontrado numa das gavetas da mesa da cozinha. Dessa feita, Quinhas gritara. É que Valério saltara lá de dentro e avantajara-se brandindo aos urros um facalhaz.
- Que horror, querido, pareces um cossaco! – dissera Quinhas que, no autocarro dessa manhã, lera nas Selecções um artigo dum biólogo americano sobre cossacos.
E, então, solenemente, como só os casais muito amigos sabem fazer, combinaram logo ali que Valério, por mais apoucado e encafuado que estivesse, não pregaria sustos daqueles à sua Quinhas. E beijocaram-se, prazidos. Os exercícios de auto-apoucamento de Valério tinham um fim: preparar a grande surpresa para o Necas, quando ele viesse a férias pelo Natal. E vai daí – como o tempo corre! – o Necas veio. Valério considerou o filho com apreensão. Valeria a pena a surpresa? Necas estava tão grande! Aquela sombra no beiço, aquela voz do peito pontuada de estridulações…
- Ora, o Necas é ainda tão criança! – sossegou-o Quinhas.
Criança que era, o Necas só muito raramente acordava no meio do sono com as movimentações tardias que naquela casa estavam a ser o teor diário. Mas na véspera do Natal, o silêncio foi inesperadamente tão grande que o Necas passou toda a noite numa excitação que nem te digo. Coisas de crianças, coisas da quadra?
Ao levantar-se, pés nus, para ir ver o sapatinho, o Necas já ia a bordo dos patins que a mãe lhe prometera. Quando deu com o pai, apoucado, a acenar-lhe amigavelmente da amurada do sapato, Necas fugiu a procurar no regaço de Quinhas a verdadeira dimensão do seu horror:
- Sa…Sa…Saiu-me o…o… o pai no sa…sa…sapato! – soluuuuçava o órfão de vivo. E a mãe, ultrapassada pela reacção do Necas, consolava-o como ia podendo, prometendo-lhe que o pai voltaria a crescer, a crescer.

Alexandre O´Neill in Gloria in Excelsis, Histórias Portuguesas de Natal, (coord. Vasco Graça Moura) col. Mil Folhas, Público.

Natal Chique, Vitorino Nemésio



Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.


Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.

Vitorino Nemésio

Intertextualidades: Pêro da Ponte, Adília Lopes, Catarina Nunes de Almeida



Se eu podesse desamar
a quen me sempre desamou,
e podess'algún mal buscar
a quen me sempre mal buscou!
Assí me vingaría eu,
     se eu podesse coita dar,
     a quen me sempre coita deu.

                                                              Pêro da Ponte

Não podemos
desamar
quem nos ama

Se nem
quem nos desama
podemos desamar

                                                                    Adília Lopes


Se eu pudesse desamar
destecer as barcas dos autos de Inverno -
frota de cabelos esparsos
por entre águas vertebradas
nas tuas pernas
perdição dos peixes.
Se eu pudesse digerir a cidade depois do teu nome
aparar a plumagem que me separa dos animais
e cair para dentro deles
num abraço escavado por eles
disponível para a idade para a margem da lavoura
onde nunca se aviste
o mar.

Catarina Nunes de Almeida

Expresso Actual, 18 Dez 2010. Pages16 - 17




Expresso Actual
18 Dez 2010

Natal | Yvette Centeno



O Chefe de família limpou a boca ao guardanapo e afirmou assim como dois e dois são quatro e não são outra coisa
 O Natal é o Natal e não é outra coisa antes pelo contrário
 E para provar o que dizia comeu uma asa de peru
com recheio de castanhas
e limpou os dedos gordurosos ao bordado da toalha
À volta da mesa metade da família discutia a mensagem
e comia
e a outra metade mais intelectual comia a mensagem
e discutia
sim tal não tal
sim tal não tal
não tal
não tal
Natal

Yvette Centeno

PAINÉIS DE SÃO VICENTE DE FORA, VISÃO POÉTICA



CINEMA | PAINÉIS DE SÃO VICENTE DE FORA, VISÃO POÉTICA
DE MANOEL DE OLIVEIRA
Filme 35 mm, cor, som, 16’
Financiado e produzido pela Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto
09 DEZ 2010, 21h30 - AUDITÓRIO

A Praia das Maçãs, António Lobo Antunes


E então no princípio de agosto íamos para a Praia das Maçãs. Tudo começava como a partida, em sobressalto de fuga, de aristocratas russos a seguir à revolução de dezassete: tiravam-se os reposteiros e as cortinas, enrolavam-se os tapetes, cobriam-se os sofás de lençóis brancos, desprendiam-se os quadros das paredes que mostravam rectângulos mais claros pendurados de grampos, embrulhavam-se os castiçais, os talheres, os bules e as salvas de prata em jornais, a casa aumentava de tamanho e os sons ganhavam a amplitude de explosão de passos em garagem à noite, vinha uma camioneta carregar frigorífico, bagagem e criadas que seguiam logo de manhã, antes de nós, para o exílio das férias, e à tarde os meus pais embarcavam as crias que lutavam no banco de trás por um lugar à janela, entre lágrimas, pontapés e queixinhas, excepto o meu irmão mais novo que de pé no assento com o babete ao pescoço e um Pluto de borracha apertado no peito ia acenando adeuses, de Benfica a Sintra, aos automóveis que nos seguiam.
Depois de Colares os adeuses tornavam-se impossíveis por culpa do nevoeiro: percebiam-se a custo telhados de chalés e cumes vagos de pinheiros numa bruma desfocada, o mar invisível chiava um mecanismo ferrugento de berço, alcançávamos ao anoitecer uma vivenda desconhecida e húmida, cercada de arbustos horrivelmente tristes que as ondas se esqueceram de levar, adormecíamos em cobertores molhados com a ronca do farol a baralhar-nos os sonhos, e no dia seguinte, às nove da madrugada, a nossa mãe, em roupão, vinha ao convés do jardim observar o nevoeiro com um sobrolho de almirante, garantia 
        – Depois da uma levanta ~
       e nós, os filhos, de panamá na cabeça, submersos em cascas concêntricas de casacos de malha, parecidos com os automobilistas vestidos de urso do princípio do século, marchávamos a tiritar, em fila indiana, pastoreados pela criada, de nariz roxo de frio, até à praia em que se distinguiam os iglus de um ou dois toldos imprecisos, icebergues à deriva e os meninos-pinguins de uma colónia de férias guinchando como leitões a esbracejarem de susto, que banheiros-esquimós agarravam à força para os mergulharem de golpe, num clima de aurora boreal, entre calhaus de gelo e esqueletos de exploradores polares.
Sentados na areia, arrepiados de gripe, de pás, baldes de plástico e formas de bolo inúteis, reconhecíamo-nos uns aos outros pelo ímpeto da tosse e pela tonalidade dos espirros, e no Instituto de Socorros a Náufragos acumulavam-se, nas mesas de pedra dos afogados, moribundos de pneumonia com tantos casacos de lã e tantos panamás como nós. Às onze, quando das bandas da serra embuçada em películas cinzentas crescia um bocadinho de castelo a nossa mãe descia à praia, descalçava-se junto à estaca de toldo onde se amontoava um cone de sandálias, abria o Paris-Match e perguntava radiante, apontando em triunfo uma nesguita de ameias ~
        – Eu não disse que daqui a nada levantava?
       distribuindo a cada um embalagens de aspirina.
       Nunca mais voltei à Praia das Maçãs.

António Lobo Antunes, Livro de Crónicas, 5.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 2002

Histórias de Amor de Robert Walser [no Expresso]




Expresso Actual
07 Jun 2008

Russell Edson na Comunidade de Leitores


Tudo começou pela imagem, pelo cinzentismo pelo cigarro que se adivinha, pelo ar tão normal...  e depois vieram os textos (poemas como  o autor prefere)....
A Filipa escolheu  "Um homem que escreve" e "O livro branco" , o Tiago escolheu "Uma Máquina"; a Joana "O Outono", a Raquel  "O livro branco".  Rui Manuel Amaral (muito, muito obrigada, uma vez mais) conduziu a conversa e já temos autor para Janeiro: Robert Walser...
E em todos ficou a vontade de, como em "O Livro Branco", criar um endereço fictício.



UMA MÁQUINA
Um homem construíra uma máquina... Que faz o quê? Disse o seu pai.
Que fica vermelha com a ferrugem se chover, não te parece, pai?
Mas uma máquina é o que rouba o trabalho a um homem, disse o pai, e o trabalho é oração, logo a máquina é um pecado.
Mas a máquina também pode ser amorosa, cultivando teias de aranha entre as rodas onde rastejam pequenas patas negras; e logo as ervas aparecem entre as engrenagens - E os seus raios adornados com borboletas...
Não gosto da máquina, mesmo se é amável, pois pode ainda decidir amar a minha mulher e apanhar o meu transporte para o trabalho, disse o pai.
Não não pai, é uma máquina voadora.
Bom, supõe que a máquina faz ninho no telhado e tem filhos máquinas? disse o pai.
Pai, se quisesses olhar para a máquina apenas umas horas irias aprender a amá-la, talvez até a dedicar-lhe a própria vida.
Eu não faria tal coisa, pelo menos com a tua mãe a ver, cata¬logando as minhas infidelidades para me confrontar com elas na cama... Talvez eu conseguisse simpatizar com esta humilde obra de ferro, pois que já me sinto motivado a assegurar-lhe que existe um Deus, sim, até para ti, querida mdquina paciente. Mas a tua mãe vigia. Até a minha mãe vigia. Todas as mulheres da casa observam pelas janelas, esperando para ver o que farei . [Russell Edson]

Pessoa, 75 anos depois

"Eu já não sou eu. Sou um fragmento de mim conservado num museu abandonado. O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos." Bernardo Soares