A História do Velho Entristecido com a Vida | Miguel Rocha de Pinho [Prémio Literário Correntes d’Escritas/ Papelaria Locus]

Miguel Rocha de Pinho 


Mais um dia. Mais outro dia. Um atrás do outro, sem fim, sem começo, uma sequência tão repetitiva como a própria palavra. E é sempre este apartamento velho, esbranquiçado, como se já não vivesse cá ninguém há tanto tempo. E como era bom que isso fosse verdade. As nuvens movem-se como ontem, como anteontem, antes até. O céu está cinzento, choveu de noite, eu ouvi, não dormi nada. Estive a pensar, pensei muito. Olhei o relógio várias vezes durante a noite. E só cheguei a uma conclusão. É tarde. Mas ainda não é tarde demais.
Longos anos viu passar esta rua. Ainda era eu pequeno e jovem, sedento por aventura e brincadeira. Lembro-me tão bem dos agricultores que passeavam a foice e enxada pela rua, aliás, pelo caminho de terra, caminhando para mais um dia de trabalho. Eu brincava com os meus amigos, filhos de outros camponeses, alheios à podridão que estava a começar no mundo. Mas crescemos, todos crescemos, crescemos com o mundo e apodrecemos com ele.

É uma triste verdade, a vida. Passamo-la todos a fazer as mesmas coisas, ninguém consegue fugir às regras impostas pela sociedade. Coitados daqueles jovens que tentam ser diferentes e acabam humilhados em público. Coitados daqueles outros que seguem as regras sem perguntar e vivem numa aparente felicidade, apenas com as entranhas contorcidas na solidão. Estou cansado. Talvez devesse ter dormido.

Mas para quê? Talvez para ser feliz. Talvez só nos sonhos somos mesmo felizes, de outra forma não se utilizaria a expressão 'mundo de sonho'. Talvez se adormecesse, seria feliz. Pena que depois da dormida, há que acordar. A rua está silenciosa, ainda ninguém deu o ar da sua graça. Não que vá saber pelos olhos, a janela está fechada, estou na escuridão, a luz não entra aqui. Se bem que mesmo com a janela aberta, a luz nunca entra aqui. Este apartamento será para sempre escuro e enterrado em tristezas e solidão. Talvez devesse ter dormido.

A madeira está podre. Consigo senti-lo. Estes apartamentos estão velhos, demasiado velhos e esquecidos. Quem cá vive, não sairá mais de cá. E quem cá não vive, nunca cá entrará. São prédios repulsivos, feios, muito feios. Mas que interessa? Estou velho, velho e rude. Velho e, tal como estes prédios, esquecido. Ninguém sabe de mim, ninguém se lembra, só me vêem o corpo e os olhos, mas ninguém sabe nada. Estou cansado. Talvez devesse ter tomado mais um comprimido.

Malditos medicamentos. Só os jovens para inventar mais drogas para nos manter vivos por mais tempo. Só os jovens é que têm ideias destas, eles pensam que serão jovens para sempre, eles pensam que se se mantiverem vivos por mais tempo, poderão aproveitar mais a vida. Mas que vida? Chega a uma altura em que a vida deixa de se importar connosco. Ficamos velhos e enrugados, e a última coisa que queremos são medicamentos para ficarmos vivos por mais anos. Ficarmos esquecidos por mais anos, vivos de corpo, mortos de alma por mais tempo. E passar as noites desperto, a pensar. E a lamentar não ter dormido, na manhã seguinte. São tão ingénuos, estes jovens. Vão todos ser espezinhados, um dia, esmagados pelo alto poder do tempo. E nunca ninguém aprenderá com isso, porque nós, que os avisámos, já não estaremos aqui para lhes dizer 'eu avisei-te'. Talvez seja essa a única utilidade dessas drogas. Talvez. Talvez devesse ter dormido. Estou muito cansado.

Então, porque não durmo. Estou velho e cansado, tenho um longo dia pela frente, um longo dia que vai ser inequivocamente passado no café, a olhar os transeuntes por entre as vitrinas. Passar todo um dia, apenas com um café. E talvez um bolinho a meio da tarde. Mais tarde, voltarei para este apartamento que fede à velhice, estender-me-ei na cama com dificuldade e preparar-me-ei para outra noite passada a olhar para o despertador, a pensar. E amanhã será hoje, outra vez. E pensarei, tal como hoje, 'talvez devesse ter dormido'.
Está tudo mudado. As músicas são diferentes, os filmes são diferentes (não que saiba por experiência, que já não vou ao cinema há muito tempo), as pessoas estão diferentes, todo o mundo está diferente. E isso entristece-me. Onde já vão os dourados anos em que eu era jovem e tinha o mundo à minha frente, uma grande pilha de oportunidades estendia-se aos meus pés. Não aproveitei nada, fiquei parado, à espera que as coisas me caíssem em cima. Mas tudo secou rapidamente, nada tive, sozinho fiquei. Sozinho estou. E o dourado deu lugar ao cinzento. Tal¬vez devesse mesmo ter dormido.

Continuo aqui na cama. Sei que vou precisar de muito esforço para conseguir sair dela, estou velho e não tenho ninguém para me ajudar. Desapareceram todos. Não que tenha ido atrás de alguém, não. Sou talvez demasiado orgulhoso para o fazer. Estou cansado, agora. Agora estou velho e perdido. E o tecto qual¬quer dia desaba sobre mim. Desde que não doa muito, não me importo. Estou triste. Desiludido. Tinha tantos sonhos em criança e nenhum deles foi cumprido. Estava longe de adivinhar que ia acabar num apartamento velho e podre, sem ninguém.

Tenho de sair daqui. Este ar pesado está a empurrar-me contra o chão e sinto tudo isto abafado. Vou mais uma vez, para o café, olhar pela janela, a vida do outro lado. Vou ser, mais uma vez, o primeiro cliente do dia. O primeiro, e não primeira vez, o único. Espanta-me como aquele café ainda não foi à falência. Sempre tenho onde estar, que não este apartamento morto. Como me custa sair desta cama! Já está, pronto. As minhas costas já não são o que eram, doem-me muito. Dor que vai com uns comprimidos. Talvez seja melhor levar mais alguns frascos para logo. Poderei precisar. Talvez, talvez.

Já não como nada há algumas horas, mas não tenho fome nenhuma. Já me sinto sem estômago, como se não precisasse de comer para sobreviver. Ou talvez como se não precisasse de sobreviver para comer. Está escuro, no quarto, mas para quê abrir a janela? Ninguém irá cá entrar, ninguém irá barafustar por não ter deixado entrar um pouco de ar fresco. Eu não preciso de ar fresco. Pelo menos, não hoje. Onde pus a bengala? Ah, aqui está. Vamos indo, então.

A porta está perra. Custa-me abri-la. Será que cairá se mandar um empurrão? Talvez não. Não, não caiu. E a porta está aberta. Já posso passar. O céu está muito nublado, lá fora, está mais cinzento que ontem. Vai chover mais hoje. Bem, dentro do café não chove, isso é certo.

Tenho de tomar as escadas, o elevador não funciona. Nem eu teria coragem de o usar, está tão podre como os prédios. Estas escadas parecem infinitas, tão difíceis de descer, tão difíceis de subir. Não se ouve nada, estranho. Já não é propriamente cedo, já deveria haver gente a sair de casa com pressa, em direcção aos seus trabalhos. Talvez seja fim-de-semana. Já nem sei, os dias são todos iguais. A rua está molhada, choveu mesmo durante a noite. Já só falta mais um piso. Estas escadas estão sujas, fedem a tinta. Andam a pintar o piso de baixo, váse lá saber porquê. Tentam reparar o irreparável, estes homens.

- Bom-dia, senhor. – diz um deles. Não, não é um bom dia, mas eles não saberão o porquê.

- Bom-dia… - a porta de entrada também está perra. Estes prédios qualquer dia vêm abaixo, de tão velhos que estão. E esta não consigo abrir. Talvez um pouco mais de força. Não, não consigo, maldita porta que decidiu não abrir.

- Deixe-me ajudá-lo. – ofereceu um dos pintores. O rapaz lá empregou um pouco mais de força, força tal que a velhice já não me traz. Conseguiu-a abrir.

- Obrigado.

- Estes prédios já estão um bocado maltratados, não? – que perspicaz, este rapaz.

- É o preço da velhice.

Abandonei o edifício, entristecido. Lá está a rua, triste como eu, cinzenta, porca. Um jornal voa ali mais ao fundo, está vento, está frio. Talvez devesse ter ficado na cama, sempre estava mais confortável. Talvez devesse era ter dormido, que estou cansado e os meus olhos estão pesados.

Lá está o café. Vazio, como era de esperar. Está a ficar cada vez mais frio cá fora, é melhor entrar. A televisão está desligada, o empregado está a limpar copos, está tudo muito silencioso hoje. Cheira a lavado aqui. As cadeiras ainda estão sobre as mesas; o café abriu há poucos minutos.

- Bom-dia, senhor! – exclamou o empregado, cheio de energia.

- Pronto para mais um dia quase sem trabalho? – este café está condenado a fechar, nunca cá vem ninguém.

- Vamos sobrevivendo. O senhorio tem um café noutra rua e, pelos vistos, lá, aquilo está a dar boa massa. Disse-me ele que só não fecha este, porque o estima muito. Tem boas memórias deste lugar. Mas bem, é o seu café de sempre? – é. É o meu café de sempre. Boa escolha de palavras.

Estes prédios são tão feios por dentro como por fora. Detestáveis, horrorosos. Alguém abriu a janela. Ah, é aquela rapariga. Completamente convencida de que é grande, trata os outros como se fossem lixo. Aposto que neste momento pensa que eu me estou a derreter a olhar para ela. Precisa urgentemente de cair na realidade, vai sofrer tanto aquela rapariga.

- Cá está o seu café.

- Obrigado, rapaz.

Será que trouxe o papel? Lembro-me que o pus no bolso do casaco que tenho vestido, ontem antes de ir para a cama. Sim, ainda está aqui. E também cá estão os comprimidos. Primeiro, saboreio o café.

Este mundo está como estes velhos prédios. Irreparável. Mas teimam em deitar mais remendos onde não dá. Este café está bom, devem estar a experimentar novas marcas. E lá está a vida a correr com o vento, as nuvens cada vez mais negras, vai chover hoje. A rua está toda suja, este é o fim do mundo, com certeza. Sentirei falta deste café, embora seja apenas a primeira vez que o provo. Estou cansado. Vai chover mais. Não faltará muito.

Eu aqui estou. Cansado da vida, farto da espera. Submeter-me à velhice é tão mais doloroso que a outra alternativa. Tenho o papel. Tenho os frascos. Tenho a decisão.

- Rapaz, tens uma caneta?

- Sim, sim, espere só um segundo. – tenho todo o tempo do mundo. – Aqui está.

- Obrigado.

Começo a escrever.


Rapaz,

Não mereces isto, nem sei o teu nome, nem sei nada sobre ti. Mas és a única pessoa que me tem acompanhado durante esta velhice nojenta e dolorosa, pelo que sinto que saberás o que fazer. Estou cansado desta vida cinzenta, cheia de nuvens que não desaparecem, de prédios rotos a desmoronar, de pessoas imbecis com a mania da superioridade. Já não sou ninguém. Não que alguma vez tivesse sido, mas ao menos já tive a oportunidade. Agora nem isso. Agora nem isso.
Rapaz, não te assustes. Sabes o que fazer, tens esta carta, não te assustes, não fujas. Vou deixar esta carta em cima da mesa, junto com o frasco vazio.

Rapaz, obrigado pelo café. Estava muito bom, hoje.

O Velho e teu único cliente.

Dobro o papel. Sorrio levemente.
Está quase.
Pego no frasco, despejo o seu conteúdo na boca. Custa-me a engoli-los, mas consigo.
Agora só tenho de esperar.

Como este café está bom!


Miguel Rocha de Pinho

Amor é um fogo | Camões

Amor é um fogo

FÁBRICA DE SONS


1 de Março de 2010
- oficina FÁBRICA DE SONS
das 14h30 às 17h30

Museu de Serralves

(na imagem instalação de Richard Long, em Serralves)
Posted by Picasa

Os Sinais do Medo, de Ana Zanatti, por Raquel Serafim



A homossexualidade é o tema central deste livro de Ana Zanatti.
Em Sinais do Medo cruzámo-nos com quatro personagens principais:  Rosarinho,  Rita,  Luís e  Paulo.
Rita e Rosarinho não se conhecem,  mas levam uma vida muito idêntica - rotina, depressão, falta de vontade e de força para continuar a vida.
Luís e Paulo são um casal  com vários problemas. Luís, que foi casado com Teresa, após o divórcio perdeu a custódia de Mariana. Paulo vive em tensão com a família que não aceita a sua  orientação sexual, entendem-na como um desvio à normalidade.
Rosarinho e Rita só se conhecem,  quando seus amigos têm um acidente e sentem logo uma empatia muito forte: começa aí a desenhar-se  um grande amor.
Paulo,  cada vez mais sufocado,  suicida-se em sua casa,  deixando Luís   devastado.

"Neste momento não me podes ouvir, embora eu nunca me tenha sentido tão perto de ti. Foi sempre umas das minhas grandes interrogações. A eficácia do que tentamos comunicar, a traição das palavras, a capacidade de nos compreendermos uns aos outros. Como vencer esta espécie de autismo que nos condena à solidão?"

Título do Livro: Os Sinais do Medo  
Autor: Ana Zanatti
Editora: Dom Quixote
Cidade de Edição: Lisboa
Ano de Edição: 2003
 


Ana Raquel  Serafim

Eu cantarei de amor tão docemente, | Luís Vaz de Camões


Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que o amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.

Rimas, Luís Vaz de Camões

Para que serve uma referência bibliográfica?

Para que serve uma referência bibliográfica?



Uma referência bibliográfica cumpre quatro funções essenciais:

a) Reconhece o mérito do autor do texto consultado. Trata-se, acima de tudo, de uma questão de honestidade intelectual e, frequentemente, de uma responsabilidade deontológica pautada pela não apropriação indevida do trabalho dos outros. A utilização de fontes bibliográficas é, supostamente, reveladora de uma atitude intelectual prudente de quem reconhece não estar a "descobrir a pólvora". Quando não se cita pode-se inadvertidamente estar a plagiar outros autores. A alínea a) do nº 76 do Código dos Direitos de Autor (Lei 45/85 de 17 de Setembro) diz explicitamente que a utilização livre de publicações deve ser acompanhada “Da indicação, sempre que possível, do nome do autor e do editor, do título da obra e demais circunstâncias que os identifiquem”. O ponto 2 do mesmo artigo refere que “As obras reproduzidas ou citadas não se devem confundir com a obra de quem as utilize, nem a reprodução ou citação podem ser tão extensas que prejudiquem o interesse por aquelas obras”.

b) Confere maior credibilidade àquilo que o autor escreve, pois denota a sua preocupação em consultar o trabalho daqueles que escreveram sobre o mesmo tema. Sempre que se trata da utilização de uma fonte reconhecida, vista como uma autoridade nesse campo, reforça essa mesma credibilidade. Para quem lê, a citação permite identificar as ideias e informações da autoria de quem escreve e aquelas que são retiradas ou inspiradas em outras fontes.

c) Permite a quem lê localizar, confirmar e explorar a fonte de onde foi extraída a informação.

d) Funciona como espécie de "memória auxiliar" para o autor, permitindo-lhe o seu uso posterior.

(informação retirada daqui)

Referências Bibliográficas #1


Referências Bibliográficas #1

Não existe uma norma única para as referências bibliográficas, porém o modelo mais usado é aquele que Umberto Eco sugere em Como se faz uma tese em Ciências Humanas.

AUTOR (APELIDO, Nome)- Título do livro (a destacado). Nº da edição (excepto de for a 1ª, que não se menciona). Local de edição: Editor, ano de edição.

ECO, Umberto, Como se faz uma tese em Ciências Humanas, 6.ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 1995.

Quando existir mais do que um autor, devem ser colocados os nomes de todos os autores na lista de referências bibliográficas. No texto, quando existirem dois autores, colocar o último nome de ambos separados por e mas, se existirem mais do que dois autores, colocar apenas o nome do primeiro autor, seguido de et al. (abreviatura de et alii que significa que significa “e colaboradores”).


CONCEIÇÃO, Pedro (et al.), Novas ideias para a Universidade, Lisboa, IST Press, 1998.

Tempo de Poesia, O´Neill

Texto de Apresentação da colecção Tempo de Poesia e publicado numa folha solta que acompanhava o primeiro número (1962)

«Num país de poetas que não se lê poetas, tentar pôr ao alcance de um largo público pequenas antologias das obras poéticas mais significativas poderá parecer empreendimento de todo em todo insensato e destinado a não alimentar senão as veleidades de intervenção cultural de quem o tomar a seu cargo. "Aprisionada" em revistas de escassa tiragem ou em efémeras páginas literárias, "amarelecidas", sob a forma de livro, nas estantes menos à mão das livrarias, não passará, afinal, a poesia de um absurdo vício, de um roer-as-unhas, de um falar tão sem destino como o monologar dos tolinhos? Assim é, infelizmente, aqui e agora, na vergonhosa maioria dos casos. (…).»

Alexandre O'Neill

[in Relâmpago, revista de Poesia nº 13, Outubro de 2003]

Esquerdireita,. Alexandre O'Neill



À esquerda da minoria da direita a maioria
do centro espia a minoria
da maioria de esquerda
pronta a somar-se a ela
para a minimizar
numa centrista maioria
mas a esquerda esquerda não deixa.
Está à espreita
de uma direita, a extrema,
que objectivamente é aliada
da extrema-esquerda.

Entretanto
extra-parlamentar (quase)
o Poder Popular
vai-se reactivar, se…

Das cúpulas (pfff!) nem vale a pena
falar, que hão-de
pular!

Quanto à maioria da esquerda
ficará ― se ficar ― para outro poema.

Alexandre O'Neill

Curiosidades (ainda o Carnaval)



Terá sido na noite de 21 de Fevereiro de 1871, que o Barão do Salgueiro organizou um baile de Carnaval em sua casa, no Palácio do Terreiro, em Leiria, e ao qual Eça compareceu, despudoradamente, vestido de Cupido, com um fato de malha muito justo, com aljavas cheias de setas e com asas de cambraia. Depois de ter dançado uma quadrilha com a baronesa de Salgueiros, ousou persegui-la para fora dos salões entrando numa das divisões íntimas da residência. O par foi encontrado abraçado pelo cocheiro da casa e Eça acabou a ser lançado, violentamente, para fora de casa, pela escadaria abaixo. Quando chegou a casa, a coxear e com o fato todo esfarrapado disse ao seu amigo Júlio Teles: “Consummatum est – olha sou um Cupido desasado!”. Este episódio está retratado em Os Maias... (daqui)

" Eça de Queiroz também teve em Leiria as suas  leves aventuras de amor. . . E como não seria assim se nas veias lhe estufava e fervia o sangue juvenil dos vinte e cinco anos? Vou citar, ao acaso, um desses lances. Uma noite, num baile de Carnaval para que fora convidado, envergou o seu belo fato de Tirolês e apareceu, deslumbrante, no salão da dança ; não sei, porém, se por equivoco — por fácil  distracção talvez ... — foi surpreendido, daí a pouco, num quarto da casa, no momento em que, num ímpeto de apaixonado, abraçava amorosamente a dama dos seus suspiros. Não foi de paz o que se seguiu... Basta dizer que Eça de Queiroz, expulso daquele lugar de delícias, como Adão o fora do Éden, fugiu para casa, despiu o disfarce rasgado encafuou-se na cama, enviando logo uma carta urgente ao amigo com quem mais convivia, em que rogava que viesse falar-lhe sem demora.
— Que foi?. . . Que sucedeu?. . . — exclamou este, inquieto, quando entrou.
Consummatum est ! . . . — respondeu Eça, desalentado e abatido. — Sou um Cupido desasado... e com as setas partidas!
Quem tiver lido Os Maias, encontrará lembranças deste episódio verídico no capítulo YIII do volume I, onde o romancista, com deliciosa graça, dá conta da expulsão do João da Ega, esplendidamente  vestido de Mefistófeles, do baile de máscaras em casa dos Cohens, onde também havia uma dama vestida de Tirolesa. Confronte-se . . ."

[daqui   ANTÓNIO CABRAL, EÇA DE QUEIROZ : A sua vida e a sua obra. Cartas e' documentos inéditos., Livrarias Aillaud e Bertrand, PARIS - LISBOA, Livraria Francisco Alves
RIO DE JANEIRO, I916]


Caricatura de Eça de Queirós no Carnaval de 1871. Autor: Tiago Santos (Abcissa H)

Outros Carnavais (JÚLIO DINIS)


   Era uma das últimas noites do Carnaval de 1855.
   Havia menos estrelas no céu do que máscaras nas ruas.  Fevereiro, esse mês inconstante como uma mulher nervosa, estava nos seus momentos de mau humor, o folgazão Entrudo ria-se de tais severidades e dançava ao som do vento e da chuva, e sob o dossel de nuvens negras que se levantavam do Sul.  Graças à cheia do Douro, a cidade baixa podia bem prestar-se naquela época a uma paródia do Carnaval veneziano.
   À porta dos teatros apinhava-se a multidão.  Numerosos grupos de espectadores paravam diante das exposições de máscaras à venda e tornavam o trânsito naquelas ruas quase impraticável.
A animação era geral na cidade
     Todos corriam com ânsia... a enfastiarem-se, fingindo que se divertiam.
   Alguma coisa também na Águia de Ouro, a anciã das nossas casas de pasto, a velha confidente de quase todos os segredos políticos, particulares e artísticos desta terra; alguma coisa havia nesta modesta casa amarela do Largo da Batalha, que desviava para lá os olhares de quem passava.
   Desde as três horas da tarde que o tinir dos cristais e das porcelanas, o estalar das garrafas desarrolhadas, o estrépito das gargalhadas, das vozearias tumultuosas e dos hurras ensurdecedores rompiam, como uma torrente, do acanhado portal daquele bem conhecido edifício; e por muito tempo essa torrente, à maneira do que sucede com a das águas dos rios caudalosos ao desembocarem no mar, conservava-se distinta ainda, através do grande rumor que enchia as ruas.
  Os criados subiam e desciam azafamados as escadas, cruzavam-se ou abalroavam-se nos corredores, hesitavam perplexos entre ordens contraditórias, vinham apressar os colegas na cozinha ou entretinham com promessas os impacientes convivas da sala.
   Sob aparências de modéstia, a Águia de Ouro parecia desta vez aureolada de não sei que majestade, condigna do seu emblema.

JÚLIO DINIS,  Uma Família Inglesa, cap. III

Mário Dionísio





   A primeira vez que a vira fora de noite, à saída dum baile. Já a conhecia, sim, mas nunca a vira. Tudo era medíocre, como sempre, naquele baile, com as mães e as tias sentadas a toda a volta da sala, na segunda fila de cadeiras, as filhas na primeira, os rapazes às portas, prontos para o assalto mal a orquestra recomeçasse, as mães vigiando, as tias vigiando, avaliando, impedindo ou estimulando os namoros possíveis, os casamentos prováveis. O objectivo dos rapazes não era precisamente o mesmo. Mas tinham de aceitar as regras do jogo se queriam chegar a tempo às peças mais cobiçadas, sobretudo nos tangos, dançados à media luz, quando a sala ficava repleta e toda a vigilância se tornava praticamente inviável.
 No meio daquela gente alegremente entregue a esse jogo dissimulado de oferta e de procura, Augusto surpreendera, de súbito, o sorriso de Matilde, como quem estivesse a olhar por um binóculo uma paisagem sem interesse e descobrisse um pormenor inesperado com uma nitidez fascinante. Em volta, tudo continuara desfocado, os lustres, as cadeiras, as pessoas que mal conhecia e que eram a mãe de Matilde, as amigas de Matilde, as mães das amigasde Matilde. Dançaram uma vez quase no fim da noite. E falaram. De quê? Não interessava de quê. Só o tom, a descoberta, o alvoroço interior, interessavam. E desceram a escada juntos, um pouco atrás de Ana Soeiro e das amigas, que nessa altura só estavam realmente preocupadas com arranjar um táxi. Atrás de Ana Soeiro e das amigas, degrau a degrau,demorando a separação. Atrás de qualquer coisa que nascia.
     Era já madrugada. Os candeeiros apagavam-se nesse instante e do cimo dos prédios caíam molemente os primeiros bafos duma claridade ainda baça. As senhoras mandavam parar táxis, despediam-se. E a luz indecisa prendia-se nos cabelos, nos olhos, e no sorriso de Matilde. Tinha um lenço azulado ou esverdeado, transparente, em volta dos cabelos que se despenteavam à aragem da manhã próxima. Viu-a entrar no carro sem lhe dizer mais nada. E guardou para sempre, emoldurados pela janela de vidraça descida, esses cabelos
que fugiam do lenço transparente, esses olhos na sombra, esse sorriso.

Mário Dionísio, «O Corte das Raízes», in O Dia Cinzento e Outros Contos, Lisboa, Publicações Europa-América, 1978

O Deus da Matança, de Yasmina Reza, 19 de Março



"Dois rapazes andam à pancada depois da escola e um deles parte os dentes ao outro… mas esta história não é acerca deles."

Os pais de Bruno, agora desdentado, conseguem descobrir que foi Fernando quem lhe bateu, e convidam os pais deste para irem lá a casa resolver o assunto como pessoas civilizadas.
O encontro começa num tom muito cordial e civilizado, mas lentamente, pequenas verdades se vão dizendo e insinuando, de parte a parte. O tom amigável e compreensivo com que começaram o encontro é a pouco e pouco substituído por uma desagradável tom de agressão.Todo o ser humano consegue conter a sua raiva apenas até um certo ponto…e uma vez ultrapassado esse ponto, poderemos finalmente conhecer verdadeiramente alguém…Este será o pior dia da vida deles."

Álvaro Lapa


uma bandeira
uma orelha
uma luva
uma linha amarela
um prego
um vestido
uma estrada
um ponto final, um travessão e um vírgula
um mapa




Miró


Cores
preto
fios
desenho
verde
cinzento
expressões
Miró
circulos
redondo

Desenho expressivo
sem sentido
com cores
confio em ti
nem muito feliz
nem pouco triste
és confuso
como um pintor

10.ºE




Helena Almeida: Sem i...


Desespero, Abandono
             tua cara de azul
Amor constante
             versos em branco
estou a ver-te de azul
             manchando o espelho
azul como o mar
             no azul forte da tua alma
(é o que eu penso)
            serve para esconder o teu rosto
azul de paz
            (és uma pessoa agradável)
com o azul...
           penso em tudo
como te amo, meu amor
           uma pessoa bondosa
que me mata sufocadamente
          de todos os teus desgostos de amor
que me esconde o rosto
          versos em branco
          versos em branco
Azul, cor da tua alma

10.ºE

Manchando o espelho
com o azul que me esconde o rosto
(Filipa)

Pinto-me de Céu (lipograma)


Pinto-me de Céu

cor do meu peito
que me fez feliz
(Tiago)

cor dos meus olhos
cor que me fez ver-te
belo como tu és 
                                                                    (Cátia Coelho)

Céu do teu corpo
intenso como  um jogo
no extremo escuro
                                                                         (Juliana)

céu é o limite
onde eu vou
(Ana)

Como me sinto:
Eis o meu reflexo
(Joana)

Pinto-me de nuvens
que me reflectem
entre os limites longínquos de nós
(Filipa)

Penso em ti
no meu limite
(Raquell)

Tarde de mais Mariana, Filomena Cabral (por Filipa Miguel)

Tarde de mais Mariana,  Filomena Cabral


Trata-se de um texto poético, onde se adivinha um triângulo  amoroso: Júlio, Paulo, Rui.
Mariana era apaixonada por Júlio, mas ele morre e ela não lhe diz o quanto o ama. A morte de Júlio mostra-lhe que   Paulo e Rui são menos especiais do que Júlio:


"Júlio! (...) não vivi anos a recordar-te para perder-te de novo, ou desistir de ti (....) Júlio, Júlio vem comigo  (...) prometo-te fidelidade.


 Filipa Miguel

A cadência dos bichos de conta | Alberto Pimenta

A cadência dos bichos de conta

os bichinhos do ouvido
fazem de conta que escutam
o que os bichinhos de conta
fazem de conta que contam

assim tudo corre bem
para uns e para outros
nem uns dizem que são mudos
nem os outros que são moucos

Alberto Pimenta, Bestiário Lusitano

Variações em torno de uma imagem de Helena Almeida




Tenho sangue nas mãos
é sangue do teu coração
coração ao abandono
abandono *  escuro
escuro abandono

Raquel

Tenho sangue nas mãos
é sangue do meu coração
coração de papelão
papelão melhor que o meu coração
coração magoado, traído
traído, estragado,sincero
sincero no sofrimento deste amor
Amor que me mata em silêncio.

Inês


Tenho sangue nas mãos
é sangue do meu coração
Coração que sente
sente um amor quente
quento como o verão
verão que pode ser em Fevereiro.

Ana 

Tenho sangue nas mãos
é sangue do teu coração
coração vermelho
vermelho de paixão
paixão que por ti sinto
sinto-te eternamente a meu lado
lado eterno

Filipa