o meu amor é glandular , Mafalda Gomes


da charcutaria
eu não faço fiambre de memória
estou a encher chouriços onde me deixaste

do coração é que não
o meu amor é glandular
e o teu é perpendicular relativamente ao eixo da minha secreção


entornaste vinho no meu regaço
cachos de uvas numa videira como amantes numa forca
têm em comum a gravidade

digestão
triste é fechar os olhos para não te receber pela boca que poderia
engolir a praia inteira se cá estivesses

 Ajavardamento Poético é o blogue das  Abóboras Mecânicas, nome de guerra, das  alunas do 12ºE da Escola Secundária do Padrão de Légua,  Ana Cardoso, Ana Teles, Bruna Gonçalves, Isabel Piano e Mafalda Gomes.  Blogue que nasce   «no âmbito da disciplina de Área de Projecto as Abóboras Mecânicas fazem surgir um espaço onde todos podem javardar. Um espaço asseado porém. Um espaço onde se sublimam as palavras e os dizeres. Um espaço de voo. Convida-se toda a Comunidade Escolar a entrar. Sirvam-se da nossa língua sirvam-se do que vos grita o íntimo sirvam-se deste blogue.».

Do blogue e das maravilhas que já fizeram (v.g. Padrões Poéticos & Léguas de Poemas)  voa-se para quem está por trás e descobre-se este maravilhoso O MEU AMOR É GLANDULAR, de Mafalda Gomes. O blogue vai ficar sob vigilância apertada e já está nos favoritos. Uma menina que, como a Adília, escreve coisas que não se dizem.

Fala com Ela: Filipa Leal e Inês Meneses

Para ouvir, clica aqui.

MÁQUINAS: Fundação de Serralves

Na sequência da inauguração da exposição MÁQUINAS,  a Fundação de Serralves  convida os alunos participantes a  visitar gratuitamente a exposição MÁQUINAS, o Museu e o Parque de Serralves com as suas famílias.

Vicente, de Miguel Torga




Apresentação de Vicente de Miguel Torga pelas Corujas Trovadoras e 10.ºE.






LIBERDADE

– Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
– Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.

Miguel Torga
Albufeira, 28 de Agosto de 1975
in Diário XII


Ler Vicente na íntegra aqui.

Cerva ...

O 10.ºE, o 4.ºA e o 4.ºB agradecem ao Agrupamento de Escolas de Cerva a forma calorosa com que foram recebidos.

Clube da Palavra #1

CERCO & CERVA

Amanhã, rumaremos a Cerva em boa companhia: as Corujas Trovadoras.

2 poemas de Bénédicte Houart




falou-me com duas pedras na mão
eu atirei-lhas de volta
por pouco não lhe rachei a cabeça
parti o vidro duma montra
ficou parecida com uma teia de aranha
chovesse, então, era uma maravilha
veio um polícia e levou-me
bem lhe expliquei a situação
visivelmente não compreendeu
que uma metáfora por vezes
tem consequências pouco legais
multou-me e aconselhou-me
a não reincidir
coisa que fiz logo de seguida

*******

«pus-me a escrever um poema
fosse tal e qual uma pedra e
acertasse sempre no que
eu bem quisesse
se parti alguma coisa, pois
não faço ideia
o que garanto é que
não fui multada
até recebi direitos de autor
ainda que injustamente
a pedra era obviamente um plágio
quanto ao poema, quem sabe»

Bénédicte Houart

Saltar o Cerco [a reportagem]

[para ler, basta clicar na imagem]

COMUNICADO | Miguel Torga

COMUNICADO 

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha.
Até cair.

Miguel Torga


 (Coimbra, 18 de Abril de 1961)

DIÁRIO, Ana Salomé


[Na segunda-feira, lemos alguns poemas de  Resumo, a poesia em 2009 uma antologia. O que se segue, de Ana Salomé, foi um dos que mais agradou. Um  manifesto poético que quer a raiz do poema.  Fora  os artifícios, as circunstâncias, o imediato, o banal e o corriqueiro].
DIÁRIO
A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.

Ana Salomé 
 

Saltar o Cerco [Visão]

É hoje que saímos na Visão? 
Não... ainda é o Papa...

Depois de semanas de ansiedade... a reportagem de Joana Loureiro e Lucília Monteiro (fotografia).
Obrigada à Joana por ter escrito: "No nosso grupo de alunos". A Joana e a Lucília já fazem parte da nossa turma.


Derivas de Maio ! 22 de Maio | ESMAE

 
«E se a Revolução significasse, antes de tudo, Educação?»
9:30 – Entrega do certificado de presença
9:45 – Abertura
Moderação: António Luís Catarino
10:00 – Suzana Ralha, Professora
11:30 – António Alves da Silva, Professor
Debate
12:30 – Intervalo para almoço
«Fazer o Pensar e Pensar o Fazer – Como atacar a Realidade?»
Moderação: António Luís Catarino
 14:30 – Rui Pereira, Jornalista
15:00 – Santiago López-Petit,  Filósofo. Universidade de Barcelona
Debate
16:00 ––  Apresentação do livro de Santiago López-Petit,  A Mobilização Global seguido de O Estado-Guerra e Outros Textos. Tradução e Comentários de Rui Pereira. Deriva Editores, 2010
17:00 – Projecção do Filme El Taxista Ful de Jordi Solé (Jo Sol)

Vicente ou a rendição de DEUS



Amanhã, temos o 1.º ensaio conjunto com  as Corujas Trovadoras.  Trata-se da primeira produção conjunta entre as duas turmas. O texto escolhido é  Vicente de Miguel Torga.  

Porquê Vicente? 
Porque Vicente é uma lição de liberdade e de integridade.Entre a obediência cega a Deus e a obediência à sua vontade, Vicente escolheu - assumindo os riscos - a fidelidade à sua vontade inabalável de ser livre. 

Porque Vicente preferiu o risco, ao conforto manso e amorfo da barca, ganhando assim a admiração dos outros que não ousaram desafiar um Deus castigador.

Porque Vicente  é um corpo a corpo entre o Criador e a Criatura. Duas forças, duas vontades. Os da Arca podem apenas, qual coro grego, comentar, lamentar, sofrer por e com Vicente, nada mais.

Porque Vicente desafia Deus e assume o desafio, mas sempre com as garras numa nesga de Terra.  

Porque Vicente é um desafio consciente e ponderado. 

Porque Vicente não é como  Ícaro, pois não ambiciona o CÉU, não é desmesurado, deslumbrado:  Vicente apenas  quer  cumprir(-se) numa nesga de Terra.  

Porque a Escola nos deve ajudar a ser Vicentes, a pensar por nós e a criar a nossa autonomia.


"Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre. Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu."
  

Caderno Afegão de Alexandra Lucas Coelho.


Hoje  a Comunidade de Leitores da Almedina Arrábida deixou-nos com vontade de ler o Caderno Afegão de Alexandra Lucas Coelho.
No site da Tinta da China pode-se descarregar um excerto do livro (aqui) e ver o registo fotográfico da viagem afegã de Alexandra Lucas Coelho. Fotografias aqui.
Hoje, na Comunidade de Leitores , Miguel Carvalho e Ricardo Gonçalves, tendo sempre como farol o livro de Alexandra Lucas Coelho, derivaram para outras conversas sobre jornalismo - sobre o tempo da imprensa e sobre o tempo radiofónico, sobre o tempo que  a reportagem pede e o tempo que o mercado dá,  sobre o factor sorte e sobre como a sorte pode ser ajudada.  Afinal só encontra quem procura: quem aqui  não enxerga (não se enxerga), nada verá no longe. Ou melhor, verá (e dará a ver) o que outros  querem que veja e seja dado a ver.
Daqui a 15 dias há mais Comunidade.


A Arte de Morrer Longe | Mário de Carvalho


"Todos os casais têm os seus problemas. Por que não vais para um hotel, por uns dias, filho?
- Eu não tenho dinheiro para um hotel, mãe.
- Vês? Tu não estudaste... Eu bem te avisei."
A Arte de Morrer Longe, Mário de Carvalho, pg. 26


"Eis uma das consequências da péssima educação que se ministra na Europa de hoje. Um metro, um palmo, quatro centímetros, é tudo a mesma coisa, como julgava aquele célebre criado do Eça, o Vitorino, a quem tanto dava um livro de Química, como uma peça de Teatro, «porque eram tudo coisas em letra redonda»."

A Arte de Morrer Longe, Mário de Carvalho, pg. 37

"Pouco conhecia do universo dos mestres-de-obras e a revelação dalgumas subtilezas, até então insuspeitadas, da língua portuguesa, tê-la-iam deixado muito insegura. «Dez da manhã»a querer dizer «meio-dia», «amanhã» a querer dizer «para a semana», «nunca mais», «com certeza» a querer dizer «não», «garanto» a querer dizer «nunca», «compromisso» a querer dizer «rábula» e «palavra de honra» a querer dizer «'tá bem abelha, eu bem te lixo».
A Arte de Morrer Longe, Mário de Carvalho, pg. 4o


Para ouvir Mário de Carvalho na Prova oral clica aqui.

O Papa à minha porta | Miguel Carvalho

(Joana Vasconcelos)

 

O Papa à minha porta

Hoje madruguei. Tenho o Papa à minha porta.
Acelerado, saio de casa antes das oito em direcção ao Bolhão.
Nas ruas, caminheiros de passada larga dirigem-se para a Avenida dos Aliados, hoje transformada em… Assembleia. Atravesso Santa Catarina por entre polícias e gente ensonada. No shopping Via Catarina, entro no quiosque habitual. Jornal debaixo do braço, rezam-me lamentos por causa do que Papa disse do casamento gay e do aborto. “Ele tem alguma coisa que se meter nas nossas leis?”.
À porta do Bolhão, dois homens de coletes “efervescentes”, como diria Jesus (o do Benfica, claro), vendem t-shirts alusivas à visita papal. “Sobraram das paróquias”. Por cinco euros, vai-se equipado para a cerimónia. O negócio corre, desde madrugada. Se é do frio ou da fé, não sabe, mas Emília Machado, 60 anos, veio da Trofa enregelada e lá experimenta o tamanho da camisola, a ver se o agasalho de improviso fica à temperatura do seu coração católico, “mas pouco praticante”. No mercado, ainda se arrumam caixotes, poucos. 
Há posters e estandartes de Bento XVI espalhados pelas barraquinhas, também a Nossa Senhora em calendário. Faltam clientes, mas já há um milagre: pela primeira vez, velhas vendedoras do mercado andaram de metro. “Só por isso, já valeu a pena vir cá o Papa”, ouve-se. Maria Argentina, 70 anos, está à coca do falatório que por ali vai. Avental e blusão vermelho coçado, acena que sim com a cabeça. “O metro foi a melhor coisa que nos aconteceu”. Vende flores desde miúda no Bolhão, não sabe ler, nem escrever. Conta dez netos. Veio dos Carvalhos, às portas do Porto. O trajecto faz-se habitualmente de autocarro, mas hoje os acessos estavam cortados. A medo, lá veio de metro. “Nem sabia o que fazer com o bilhete, mas agora vou vir mais vezes”. Pudesse ela e daria um saltito para ver o Papa. Mas nada que a entusiasme por aí além. “Convença-se: ele é um homem normal, tão pecador como os outros”. Na banca de fruta ali ao lado, há uma televisão colocada estrategicamente para não perder pitada. “Quer laranjinha, menino?”

Saber viver é vender a alma ao diabo | Alexandre O´Neill

Saber viver é vender a alma ao diabo

Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?»
)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.
Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.
Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»
(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)
Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...
Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?
Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!
Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.
Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!
E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...
Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra morrer?
Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!
Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
... sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...
Dize tu: - Já começou, porém, a racionalização do trabalho.
Direi eu: - Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!
     *   
Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim...

Alexandre O´Neill
(Lisboa, 19:DEZ:1924 – 21:AGO:1986, Lisboa)

Pe. António Vieira e o Barroco

«Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. E quais são estes sermões e estas palavras do céu? -- As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja.»
 Pe. António Vieira  

Adília Lopes por Adília Lopes


O cheiro de Deus: Recital de poesia de Adília Lopes from Pastoral da Cultura on Vimeo.

O PROBLEMA DE SER NORTE | Filipa Leal

 
O PROBLEMA DE SER NORTE

Era um verso com árvores à volta.
Tinha o problema de ser norte
e dia e tão contrário à natureza.
Era um verso sem ar livre
mas com árvores em círculo
e eu no centro, em baixo, nas escadas
de pedra, cheia de verde e de frio
e a pensar que continuo a não entender
a natureza contrária aos meus olhos.
Pois se as árvores são a única
paisagem deste verso, a toda a volta,
e eu no fundo, em baixo, nas escadas
de pedra ainda, se voltando-me, morrendo,
serão elas ainda a única paisagem deste verso,
como poderei amá-las
sem que

um
raro
silêncio ainda

me interrompa?

Filipa Leal, O Problema de Ser Norte, Deriva Editores

Escolas no Teatro - CONVITE

Sábado dia 15 de Maio

Escolas no Teatro

O Teatro Nacional São João convida V. Exa. para assistir à inauguração da exposição Escolas no Teatro, no próximo dia 15 de Maio, às 14:00, no Teatro Carlos Alberto.

Orientados pelos professores de Língua Portuguesa e de Artes, alunos do terceiro ciclo do ensino básico, do ensino secundário e do ensino profissional da Área Metropolitana do Porto expõem trabalhos realizados ao longo do ano lectivo 2009/2010, partindo da experiência de assistir a espectáculos da programação do TNSJ.

Escolas participantes: Escola Secundária com 3.º ciclo Clara de Resende, Escola Artística e Profissional Árvore, Escola Básica e Secundária do Cerco, Escola Secundária de Almeida Garrett, Escola Secundária da Boa Nova, Escola Secundária de Paredes, Escola Secundária Dr. Manuel Gomes de Almeida, Escola Secundária Inês de Castro, Escola no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, Instituto das Artes e da Imagem.

organização TNSJ

Teatro Carlos Alberto (Sala de Vidro) 15 | 28 Maio 2010
terça-feira a sábado 14:00-19:00 domingo 14:00-15:00


Inversos, de Ana Luísa Amaral

Terça-Feira, 11 de Maio, 18:30 - Biblioteca Almeida Garrett


Apresentação de Inversos - poesia 1990-20010

O país mais cristão do mundo | Ricardo Araújo Pereira

 O país mais cristão do mundo | Ricardo Araújo Pereira

No ano de 1143, o Papa Inocêncio II reconheceu que Portugal era um país*. Oitocentos e sessenta e sete anos depois, temo que Bento XVI venha cá dizer-nos que talvez o seu antecessor se tenha precipitado. O Papa visita Portugal numa altura em que, ao que dizem pessoas versadas em economia, embora contradizendo outras pessoas igualmente versadas em economia, o País está à beira da bancarrota. É inquietante não perceber se o Papa vem abençoar-nos ou dar-nos a extrema-unção. Seria demasiado atentatório do protocolo que o Presidente Cavaco Silva tentasse convencer o Santo Padre a devolver-nos aquelas quatro onças de ouro que D. Afonso Henriques começou a pagar anualmente à Santa Sé? Podia ser uma boa ajuda para sair da crise, mas é provável que o Vaticano já tenha gasto tudo em hóstias e talha dourada.
Portugal pode ao menos aproveitar a visita do Papa para aprender com a Igreja, sobretudo nesta altura em que o País parece condenado a fazer à União Europeia o que a Igreja faz aos fiéis: pedir esmola. Na verdade, dificilmente haverá país que viva mais de acordo com a lei de Cristo do que Portugal: há anos que os portugueses têm vindo a despojar-se dos bens materiais e a abdicar da riqueza. Se os países morressem (e não é assim tão certo que o nosso não esteja com os pés para a cova), Portugal seria certamente dos que iriam para o céu.
Para o Papa, visitar Portugal é a decisão mais inteligente que poderia ter tomado. A Igreja tem sido abalada pelo escândalo de pedofilia, e não haverá nada mais sensato a fazer quando se está envolvido num escândalo do que viajar para um país em que os escândalos são corriqueiros. De todos os altos dignitários que vai encontrar, Bento XVI deve ser o que está menos atormentado por escândalos. Portugal é a Brobdingnag dos escândalos. Assim como Gulliver se sente mínimo em Brobdingnag, qualquer escândalo estrangeiro se sente pequenino em Portugal. O périplo do Papa pelo nosso país será o equivalente a uma pessoa que tem uma pequena nódoa na camisa ir rodear-se de pintores de parede com os fatos-macaco todos sarapintados. Quem se atreverá a censurar o Papa por comandar uma instituição que só pediu desculpa a Galileu mais de 350 anos depois do seu julgamento quando é essa, precisamente, a duração média de um julgamento em Portugal? Aqui, qualquer um se sente impoluto. Deve ser nisso que consiste a nossa celebrada hospitalidade.

* Mais ano menos ano, mais Papa menos Papa. Não me chateiem. O rigor histórico atrapalha quem quer trabalhar.


Revista Visão, 6 dfe Maio

Mulher ao Mar, Margarida Vale de Gato [Pedro Mexia]

A melhor estreia de uma poeta portuguesa nas últimas décadas
Pedro Mexia 


Margarida Vale de Gato (n. 1973) é uma das nossas melhores tradutoras, como se comprova lendo as suas versões de Lewis Carroll, Christina Rossetti, Wilde, Yeats, Melville, James, Char, Michaux, Sarraute, Dickens ou Poe. Há muito que também publica poemas em revistas, mas só agora editou a primeira colectânea. A espera valeu a pena, pois "Mulher ao Mar" é possivelmente a melhor estreia de uma poeta portuguesa desde "Um Jogo Bastante Perigoso" (Adília Lopes, 1985). 


A escritora assume a "condição feminina" em praticamente todos os poemas. Especialmente a condição feminina portuguesa. Os textos têm ecos da "Menina e Moça", donzelas prendadas do Estado Novo, raparigas que ficavam em casa enquanto os homens tratavam da política, esposas dedicadas, irmãs pacientes, freiras sofridas, legiões compulsoriamente dóceis, pacientes, esperando, costurando, virgens e putas, degredadas filhas de Eva. 

Em vez de "homem ao mar" grita-se "mulher ao mar" nestes poemas, e não é a mesma coisa. Eis o poema que dá título ao livro: "MAYDAY lanço, porque a guerra dura / e está vazio o vaso em que parti / e cede ao fundo onde a vaga fura, / suga a fissura, uma falta - não / um tarro de cortiça que vogasse; / especifico: é terracota e fractura, / e eu sou esparsa, e a liquidez maciça. / Tarde, sei, será, se vier socorro: / se transluz pouco ao escuro este sinal, / e a água não prevê qualquer escritura / se jazo aqui: rasura apenas, branda / a costura, fará a onda em ponto / lento um manto sobre o afogamento" (pág. 8). A mulher destes poemas, que é arquétipo mas também sujeito concreto e vivido, herda toda uma carga cultural, e procura uma linguagem em que encontre a sua autonomia. O "eu" destes poemas é rigoroso e esquivo, sexual e cultista, vulnerável e orgulhoso. Nos últimos anos, nenhum livro de poemas autobiográficos evitou com tal mestria as armadilhas da primeira pessoa, do cabotinismo ao prosaísmo, da trivialidade ao derrame sentimental. 

A mulher que cai ao mar, ou se lançou, ou a ele regressou, fazendo o caminho inverso de Vénus, quem é? É uma mulher determinada pelos seus desejos, pela maternidade, pela experiência de uma domesticidade agreste ou azeda, muitas vezes sarcástica: "Costumes que frequentamos: / o arame da loiça, os panos dos pratos, os ganchos e as linhas / do estendal, a vinha-de-alhos, o fogão, / o alguidar, guardamos os restos, torcemos / os trapos, os nossos recados, os nossos sacos, / os nossos ovos" (pág. 45). O livro é ao mesmo tempo afirmação e luto, gémeos incindíveis. 

Alheia a todo o solipsismo, Margarida Vale de Gato escreve uma poesia relacional, em constante diálogo com pessoas que passaram, que são passado, que não estão ultrapassadas, em geral homens que deixaram um agudo sentimento de orfandade ou decepção. A amargura cultíssima e vagamente niilista nunca impede momentos a que podemos chamar "românticos", de entrega confiada e apaixonada. É o caso um notável poema chamado "Intercidades", no qual a tristeza do mundo e a inquietação individual é atravessada pelo comboio que engole eucaliptos na paisagem portuguesa. Mas há também uma constante queda no "bathos" quotidiano, feito de segundas escolhas e de quedas conscientes e sem culpabilidade: "Foi como amor aquilo que fizemos / ou acto tácito? - os dois carentes / e sem manhã sujeitos ao presente; / foi logro aceite quando nos fodemos // Foi circo ou cerco, gesto ou estilo / o acto de abraçarmos? foi candura / o termos juntos sexo com ternura / num clima de aparato e de sigilo. // Se virmos bem ninguém foi iludido / de que era a coisa em si - só o placebo / com algum excesso que acelera a libido. // E eu, palavrosa, injusta desconcebo / o zelo de que nada fosse dito / e quanto quis tocar em estado líquido" (pág. 23).

Árvore da Vida | Pe António Vieira


"Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos chamar «árvore da vida», há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles." 
Pe António Vieira, in Sermão da Sexagésima

Sermão da Sexagésima [Ficha de trabalho]

FInf LitPort Sermão Sexagésima avaliação

UMA FALHA NO PROGRAMA | Margarida Vale de Gato


UMA FALHA NO PROGRAMA

Estou à espera mais uma vez
de ser gentilmente votada
ao meu lugar de amante
intensa, grata e gozada
e é melhor que fique assim,

nem me queixo, inconveniente
sou para todo o protocolo
e além disso algo demente;
tenha embora certo interesse
falta-me um tudo-nada, charme

e desprendimento - aliás,
agradeço que entre portas
me deixem dedicar mil vezes,
no meio dos uivos e lodos,
a minha vulnerabilidade -

- mas se por acaso, só desta,
for mesmo da minha cabeça
e acontecer de outro modo,
fico de tal forma contente
que hei-de agradar-vos a todos.

Margarida Vale de Gato, in Mulher ao Mar, Mariposa Azual, 2010.

«Glosa da Nau Catrineta», Margarida Vale de Gato

 Há uns tempos, as Corujas Trovadoras brindaram-nos com uma brilhante apresentação da Nau Catrineta, que pode ser vista aqui.
Agora, a provar que a literatura é coisa viva e que os textos falam um com os outros (intertextualidade), deixamos aqui ficar uma  Glosa da Nau Catrineta, belo poema de Margarida Vale de Gato. Nesta glosa , a poetisa (ou poeta, o que mais lhe agradar)  dá voz às três meninas e cada uma delas representa as três parcas.

 «Glosa da Nau Catrineta»

Mote

Mais enxergo três meninas
debaixo de um laranjal,
uma na roca a fiar,
outra sentada a coser,
a mais fermosa de todas
está no meio a chorar.


Glosa

Somos as três irmãs mouras,
nosso pai anda no mar
e lá longe foi buscar
onde o ouro as terras doura
um anel pra nos casar.
Mas um demónio que o tenta
faz passar por genuínas
as visões que lhe apresenta:
“Vejo aplacada a tormenta,
mais enxergo três meninas.
 

Somos as três irmãs parcas
no falar e no folgar,
“Muito riso, pouco siso”,
quis nosso pai avisar
quando partiu com as barcas
nesse dia de improviso.
Seguiu dos ventos a rosa
espinhosa e fatal,
deixou-nos sós e ciosas
debaixo de um laranjal.

 
“Eu sou a irmã da roca
fio finos fios de hera,
quem meus finos fios toca
num ventre de mãe se gera
e num seio desemboca.
Fui eu quem fez o tecido
pra minha avó se encontrar
três vezes com seu marido,
duas rompi-o ao tear
uma na roca a fiar.”
 

“Eu sou a irmã que cerze
e tenho um metro que mede
o fio da alma que impede
o corpo de se perder.
Fui eu quem fez a bainha
dessa espada que levou
o meu pai para vencer
e três vezes me cortou,
duas a enfiar a linha,
outra sentada a coser.”
 

“Eu sou a irmã que carpe,
que tem nas mãos a tesoura,
e no alto dessa escarpa
nas terras que o ouro doura
sou tão bárbara quanto moura.
Fui eu quem cortou o fio
do mastro preso ao navio
do pai que me deu em bodas
ao demo a quem sugeriu
a mais fermosa de todas.”
 

Somos as irmãs que vêem
com um só olho de auguro
que as nossas agulhas têm
o passado e o futuro,
os mundos que há para além
e os mundos que há sob o mundo
onde os mortos vão penar:
e nosso pai, lá no fundo,
que quis o demo comprar
está no meio a chorar.



 Margarida Vale de Gato, in Mulher ao Mar