Livros...

Mulher ao Mar, Margarida Vale de Gato



ÉMULOS

Foi como amor aquilo que fizemos
ou tacto tácito? – os dois carentes
e sem manhã sujeitos ao presente;
foi logro aceite quando nos fodemos
Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
o acto de abraçarmos? foi candura
o termos juntos sexo com ternura
num clima de aparato e de sigilo.
Se virmos bem ninguém foi iludido
de que era a coisa em si – só o placebo
com algum excesso que acelera a líbido.
E eu, palavrosa, injusta desconcebo
o zelo de que nada fosse dito
e quanto quis tocar em estado líquido.

****


COM PAIXÃO E HIPOCONDRIA

Confortamo-nos com histórias laterais,
evitamos o toque, há risco de contágio;
por mais que preservemos a franqueza
passou o estágio já da frontal alegria:
estamos bem, obrigada, embora aquém
de antes – entretanto admitimos não
saber, e enquanto resta isto indefinido,
mesmo com luvas, pinças de parafina,
não sondamos mais, sob pena de crescer
um quisto nesse incisivo sítio onde
achámos sem tacto que menos doía

[in Mulher ao Mar, Mariposa Azual, 2010]

Contratenor Luís Peças

Ainda no rescaldo da visita a Alcobaça, Luís Peças, contratenor, que nos brindou com apontamentos musicais, na Sala do Capítulo, uma sala cheia de história e com uma acústica fantástica.

O valor do vento, Ruy Belo



Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto.

Ruy Belo

Kleist


“Poder-se-iam distribuir as criaturas humanas por duas classes: aquelas que percebem de metáforas e aquelas que percebem de fórmulas. Os indivíduos que percebem de ambas as coisas são muito poucos e não chegam para constituir uma classe.” Kleist, in Sobre o Teatro de Marionetas e Outros Escritos

VIEIRA PREGADOR

Para fazer da sua palavra um meio eficaz de intervenção e actuação, Vieira recorre naturalmente às técnicas que a Retórica (disciplina fundamental no curriculum escolar e na formação intelectual dos homens da época) sistematizara e codificara. De um dos seus sermões (o "Sermão da Sexagésima", o mais conhecido, aquele que o autor escolheu para abrir o primeiro volume dos que publicou) fez Vieira uma espécie de sucinto tratado de Retórica, um sermão que pretende ensinar como pregar um sermão que seja de facto um discurso persuasivo, capaz de convencer e converter os ouvintes
MARIA LUCÍLIA GONÇALVES PIRES

O Caranguejo, Carlos Pinhão

O Caranguejo

o caranguejo
talvez seja bom rapaz
não digo que não
mas quando o vejo
andar para trás
faz-me lembrar a Revolução.
(Set. 1983. Inédito)

Carlos Pinhão

in Poemabril  - Antologia poética,2.ª edição (Organização de Carlos Loures E manuel Simões), Fora Do Texto, Coimbra, 1994

Elefante de Abril , de Carlos Pinhão


ELEFANTE DE ABRIL

A Revolução
teve uma flor
-o cravo.
Não teve um animal
e, como tal,
proponho o elefante
tão paciente e sofredor
durante tanto ano
mas quando a paciência se esgotou
foi coisa de se ver
violento eficaz empolgante.
Depois, voltou a ser
lento
bom rapaz
algo distante.
Mas, atenção
nunca se VIU morrer
um elefante!

(Bichos de Abril, Lisboa, Ed. Caminho, 1977)

in Poemabril  - Antologia poética,2.ª edição (Organização de Carlos Loures E manuel Simões), Fora Do Texto, Coimbra, 1994.

25 de Abril




Primeiro as árvores cobri-
ram-se de folhas depois

de pássaros e depois de
homens.

Jorge Sousa Braga, Porto de Abrigo (2005)

Barroco: Igreja do Convento de Santa Clara


"No ano de 1758 escrevia-se sobre a igreja de Santa Clara: É a mais perfeita e asseada deste Reino, toda coberta de talha de ouro, e azul.

A Igreja do Convento de Santa Clara, é o melhor exemplo que se pode apontar numa cidade fortemente timbrada pelo fenómeno do barroco. A Arte da Talha dourada e policromada, é uma das expressões que mais a notabiliza, enfatizando dessa forma a apropriação dos princípios da Reforma Católica (Natália Marinho Ferreira-Alves). Faz parte de um conjunto de edifícios - igrejas forradas a ouro - em que a madeira entalhada e policromada ocupa todas as superfícies parietais e coberturas do espaço sacro, provocando no crente a evasão sensorial e elevando-o a uma realidade supra-humana. O trabalho de talha da capela-mor e arco cruzeiro é a obra-prima de Miguel Francisco da Silva, arquitecto e entalhador, um dos melhores intérpretes do barroco joanino no Porto." (daqui)

Barroco: Igreja e Torre dos Clérigos



A igreja dos Clérigos é pois a obra fundamental de Nasoni ― e fundamental o é também para a arquitectura barroca. Iniciada em 1732, resulta da decisão de uma assembleia (1731) da Irmandade com o mesmo nome constituída em 1707 e que desejava sede condigna. Na reunião de 31 o projecto é apresentado e logo aprovado sendo então presidente da Irmandade o Deão Jerónimo de Távora e Noronha, protector permanente de Nasoni.
A nóvel igreja seria construída em local extra-muros da cidade, confirmando a apropriação de novos espaços feita pela arquitectura barroca, funcionando simultaneamente como pólos dinamizadores do crescimento urbano. É por isso intencional o aproveitamento de um sítio elevado donde a igreja pudesse irradiar o seu poder visual, prestigiando a Irmandade e a própria cidade. Esta terá compreendido a importância decisiva da obra pois comemora comluminárias (concebidas por Nasoni) e cortejo em que se incorporam as principais forças sociais da cidade, a abertura dos trabalhos.O ritmo das obras não é constante, como resultante de intrigas movidas pelo Clero da igreja de St.° Ildefonso, que receava a concorrência da nova igreja. (…)
Por sobre todas as vicissitudes o Porto tinha finalmente a sua igreja barroca, a que melhor define a renovação empreendida no período joanino. A fachada principal, com os seus dois pisos, definia-se intencionalmente na vertical, assumindo a importância de que se revestia. Às proporções juntava-se um vocabulário decorativo com exuberantes formas “gordas”, uma cenografia trabalhosa que suscitava a empatia do espectador. É “uma vasta pintura cenográfica” traduzida espectacularmente em arquitectura: painéis com florões, cascas, panejamentos, grinaldas, festões, uma tríplice coroa papal sobre almofada, estátuas de S. Pedro e S. Filipe Néri… Era encimada por um frontão de linhas ziguezagueantes, com pilastras terminais e uma cruz central reforçando o jogo ascensional. Era a apoteose dramática do pintor-decorador-arquitecto Nicolao Nasoni que assim moldava definitivamente a fisionomia da cidade. A clientela clerical do artista aceitava com entusiasmo o imaginário lírico do artista que meritoriamente harmonizava a sua formação com o gosto local. (pg. 125)


 “Faltava porém uma obra que coroasse o esforço empreendido e que prestigiasse a cidade e o artista. Dando seguimento à igreja dos Clérigos, Nasoni construiria na sua retaguarda uma casa utilitária de forma poligonal e um hospital. A partir de 1757 o conjunto completava-se com o início da construção da famosa torre que sintetizará o estilo nasoniano. Com 75,6 metros de altura, servida por escadaria com 225 degraus, divide-se em seis zonas repartidas por quatro andares. Na parte inferior, na primeira zona.” (pg. 129)


A Torre dos Clérigos coroa a obra de Nasoni e a arquitectura barroca do Porto, permanecendo como emblema da cidade e sinal do poder do clero responsável pela renovação empreendida. O clero, que dominava de facto a cidade, era pois o único grupo social capaz de empreender tal obra ― e o único que verdadeiramente a merecia.” (pg. 130)

in Arquitectura Barroca em Portugal, de José Fernandes Pereira , ICALP - Colecção Biblioteca Breve - Volume 103,1986.

O Barroco (arquitectura)

Igreja de S.Nicolau, Porto


Igreja de Santo Ildefonso, Porto
Igreja e Torre dos Clérigos, Porto
 



"Seguindo a regra geral verificável para outros  períodos arquitectónicos, o barroco inicia-se fragmentadamente: motivos dispersos, de feição não estrutural, decorativos, inseridos em edifícios já existentes. É um período de experimentação de formas das suas potencialidades, fenómeno minoritário que entamente irá desalojar um maneirismo persistente e duradouro, até se transformar em discurso dominante.
A segunda metade do século XVII conhecerá uma justaposição de tempos artísticos, quando a modernidade barroca inicia, em substituição, um  processo necessário de renovação do panorama  arquitectónico português. O primeiro exemplo conhecido de aplicação de formas decorativas barrocas é fornecido pela desaparecida igreja de Nossa Senhora do Loreto em Lisboa, pertencente à comunidade italiana da capital.
Pinturas e esculturas que ornavam a igreja, foram importadas de Génova, anunciando um processo de italianização que será particularmente importante no reinado joanino. A principal novidade trazida por essadecoração foram as colunas salomónicas em pedra verde, instaladas em 1671, e que se celebrizaram emItália a partir do baldaquino berniniano para S. Pedro de Roma. Potencialmente essas colunas, devido ao seudinamismo formal, interessavam a uma arquitectura que pretendia quebrar padrões espaciais estáticos. (..)
As salomónicas da igreja do Loreto achavam-se despojadas de quaisquer elementos decorativos. Mas logo em 1676, na igreja de S. Nicolau do Porto, os retábulos perdidos combinavam a salomónica com elementos decorativos vegetalistas multiplicados indefinidamente e fornecendo um padrão estético que a partir da década de 80 se popularizará. Então dar-se-á início ao denominado “estilo nacional” em que a salomónica de ordem coríntia ou compósita se combina com elementos naturalistas ― cachos, folhas, aves ― ou de simbologia cristã  ― fénixes, pequenos anjos em colheita eucarística.Procura-se uma unidade na infinita diversidade e os pequenos apontamentos decorativos, prova do gosto pelo detalhe, inserem-se numa ordenação geral que os enquadra e lhes dá justificação. A talha seguirá um percurso próprio, relegando para plano menor uma escultura subalternizada e gozando dos favores de uma clientela eclesiástica que se comprazia no infinito maravilhamento visual da madeira dourada. A relação da talha com a arquitectura é precisa neste período de experimentação, e assim se manterá ao longo de todo o período barroco: destina-se a dinamizar espaços internos estáticos e austeros já existentes, que se conservam, e cuja fisionomia é assim alterada." (pg. 13-16)

in Arquitectura Barroca em Portugal, de José Fernandes Pereira , ICALP - Colecção Biblioteca Breve - Volume 103,1986.

Em Montemor...

António Vieira, Fernando Pessoa

 António Vieira

O céu estrela  o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e a gloria tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

 No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
É um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.

Fernando Pessoa, Mensagem

A directora de turma deixa um ou dois avisos | João Luís Barreto Guimarães

 A directora de turma deixa um ou dois avisos

Aquela colecção de pais (ordeiramente sentados)
cada qual se acomodou à carteira do seu filho (as
pernas maduras de uns já acima dos 50
entrando com embaraço pelas pernas
das secretárias). De novo na vez de alunos
(rememorando o passado)
jogámos ao telemóvel quando a
directora de turma deixa um ou dois avisos
próximos das coisas comuns.
A luz da tarde desvela o
que encobre o instante: tantos anos percorridos
e esta coisa não mudou
a pressa com que ansiamos pelo minuto seguinte
(não percebendo que o tempo circunstancial
incumpriu) daqui consigo contá-los
os enganos um a um
inscritos à volta dos olhos.

João Luís Barreto Guimarães
(Revista Relâmpago, n.º 25)

Coimbra / Montemor-o-Velho / Alcobaça





«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores;
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.

«Mísero esposo,
Desata o pranto,
Que o teu encanto
Já não é teu.

«Sua alma pura
Nos Céus se encerra;
Triste da Terra,
Porque a perdeu.

«Contra a cruenta
Raiva íerina,
Face divina
Não lhe valeu.

«Tem roto o seio
Tesoiro oculto,
Bárbaro insulto
Se lhe atreveu.

«De dor e espanto
No carro de oiro
O Númen loiro
Desfaleceu.

«Aves sinistras
Aqui piaram
Lobos uivaram,
O chão tremeu.

«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores:
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.»

Bocage

Amanhã vamos ouvir isto e muito mais nos claustros do Mosteiro   de Alcobaça....

Pudor excessivo e o Método, Gonçalo M. Tavares


Pudor excessivo e o Método
Gonçalo M. Tavares



Nota 1: A posição das máquinas
Comecemos: o excesso é um elemento que existe apesar das máquinas, existe contra as máquinas. Nenhuma máquina é excessiva.
Ernst Jünger fala na “energia segura” das máquinas; poderemos ainda falar na energia previsível, na energia que dá resto zero. E só não dá resto zero, só não dá certo quando avaria. Uma máquina excessiva é uma máquina avariada. Porque as máquinas foram construídas – e são ainda – para controlar a perturbação do mundo, para colocar uma rédea eficaz em redor do estúpido pescoço do aleatório.

Não queremos acontecimentos que nos tratem como estúpidos (como nos tratam as surpresas), queremos sim introduzir a racionalidade nos acontecimentos do mundo, e daí as máquinas. As coisas acontecem com uma racionalidade, com uma razão no seu sentido primeiro - razão de cálculo que coloca em relação dois números.
A razão humana é então o que, em última análise, se consegue resumir a dois números; e esses dois números lutam ou distribuem segredos entre si, e depois acalmam-se. E é importante afirmá-lo: a razão é a relação entre dois números, não é a relação entre um número e uma catástrofe, entre um número e um louco. Uma catástrofe não é racional; não pertence às operações que dominamos.

Nota 3 – A posição das máquinas

Uma máquina excessiva é uma máquina perigosa, é uma máquina má. Porque não a controlamos. E pelas razões de sempre: não é da nossa carne. Máquina excessiva, eis o perigo: tem à partida outra carne, e essa carne, para mais, está desarrumada, descontrolada; não sabe como parar - é imprevisível. O pesadelo para a tecnologia não é o decreto que impõe o fim das máquinas, é o aparecimento da Máquina excessiva. Da máquina excessiva que dê origem a outras máquinas excessivas. Da coisa se descontrolar no mundo que apareceu para controlar.
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O sonhador, de Ian McEwan (Joana Dias)


Ian McEwan,  autor do livro O  sonhador, nasceu a 21 de Junho de 1948, em Aldershot, Inglaterra.
É um Romancista, contista e roteirista, é considerado um dos grandes nomes da ficção britânica contemporânea. É conhecido pela inventividade com as palavras e pelo gosto de usar a mecânica dos thrillers como crítica social. Ao longo de sua carreira foi indicado diversas vezes para receber o Booker Prize, o mais prestigiado prémio literário britânico, o que veio a ocorrer em 1998 com o livro Amsterdam (Rocco, 1999). Publicou mais de uma dúzia de livros, boa parte deles traduzidos para o português, como por exemplo: A criança no tempo (em 1998); O sonhador (em 1999); Amor para sempre (em 1999), entre outros. Além de romances e contos também faz guiões para filmes.

    Em O Sonhador  o herói é Peter; um rapaz de 10anos cujo nome é Peter. Este rapaz sonha muito, não apenas enquanto dorme, também acordado, qualquer coisa lhe da imaginação suficiente para arranjar sarilhos. Peter era apenas um miúdo como todos os outros, mas que ninguém entendia o facto de  sonhar como se fosse realidade. Falarei de capítulo a capítulo, como forma de ficarem a conhecer melhor este livro.
     No 1ºcapítulo, Peter imagina-se a lutar com as bonecas, 'feias' como ele as chamava, as bonecas eram da sua irmã, e Peter foi apanhado pela irmã a brincar com elas, quando Peter pensava que estava a ser atacado.
No 2ºcapítulo, Peter imagina-se a sair do seu corpo e a entrar no corpo do seu gato. Peter imagina-se portanto a trocar de corpo com o seu gato e a  lutar por território de jardim com outros gatos.
    No 3º Capítulo,  ele imagina-se a descobrir, na gaveta de sua casa, um creme de desaparecer, pensando ser verdade. Os seus pais e sua irmã estavam a apanhar sol no jardim quando Peter, contente pela sua descoberta, passa esse mesmo creme pelos seus pais, e pela sua irmã. Acabando por serem eles a desaparecer.  Peter, pensando   que  está sozinho para sempre, arruma a casa, deitando ao lixo tudo aquilo de que não gostava o que lhe acabou por trazer bastantes sarilhos.
No 4ºcapítulo, onde o que aconteceu não foi um sonho, trata-se da altura em que Peter decide confrontar o rufião da escola, humilhando-o perante toda a escola quando esse mesmo rufião tentou roubar a maçã de Peter, no fim Peter torna-se amigo do rufião depois daquela tal humilhação.
No 5º Capítulo, o bairro de Peter estava sobre uma vaga de  assaltos e ele decidiu que quando esse ladrão fosse a sua casa, ele mesmo se encarregaria de o apanhar em flagrante. Descobriu que a assaltante era a sua vizinha, velha e má, que fingiu  ter sofrido um assalto para não levantar suspeitas.
     No 6º Capítulo, a tia de Peter teve de ir passar uns tempos a sua casa e levou o seu querido bebé.  Peter não se dava bem com o bebé,  já a sua irmã  Kate o adorava. Kate estava numa dessas tardes a brincar aos mágicos e acabou por provocar com a sua magia uma troca de corpo, entre Peter e o bebé, de modo a   entender o que o bebé pretendia. Acabou abraçando o bebé.
    No último capítulo, mas não menos importante,   Peter sente uma atracção por uma rapariga irmã de um seu amigo. Nas férias eles estão sempre juntos, o que contribuiu para essa atracção. Peter  um dia acorda adulto, e beija-a. No dia seguinte tem de novo com 10 anos.  Ele lembra-se do beijo, mas quando olha para ela, ela apenas sorri. E assim, com um final  indeterminado, acaba este conto.   

A vida eterna não existe. | Maria Gabriela Llansol


14 de Fevereiro  de 1972

                                                                         A cena primitiva
A vida eterna não existe.
Sentou-se arranjando as saias, para assistir à produção de texto.
Este texto é um texto que assiste à produção de texto.
Este texto é a cena primitiva do texto.
A mulher não existe, mas é escrita por _______________.


Maria Gabriela Llansol
Uma data em cada mão
Livro de Horas I

Ensaios...

Afonso Lopes Vieira



Choram ainda a tua morte escura
Aquelas que chorando a memoraram;
As lágrimas choradas não secaram
Nos saudosos campos da ternura.

Santa entre as Santas pela má ventura,
Rainha, mais que todas que reinaram,
Amada, os teus amores não passaram
E és sempre bela e viva e loira e pura.

Ó linda, sonha aí, posta em sossego
No teu muymento de alva pedra tina,
Como outrora na Fonte do Mondego.

Dorme, sombra de graças e de saudade,
Colo de Graças, amor, moço menina,
Bem-amada por toda a eternidade!

Afonso Lopes Vieira

TEOREMA, Herberto Helder

                          TEOREMA,  Herberto Helder                                                                                                                                                              Ao Dr. Ernesto Gonçalves
         
         El-rei D. Pedro, o cruel, está na janela sobre a praceta onde sobressai a estátua municipal do marquês Sá da Bandeira.  Gosto deste rei louco, inocente e brutal.  Puseram-me de joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, mas levanto a cabeça, torno o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico do meu pobre Senhor.  Por debaixo da janela onde se encontra, existe uma outra em estilo manuelino, uma relíquia, obra delicada de pedra que resiste ao tempo.  D. Pedro deita a vista distraída pela praça fechada pelos seus soldados.  Vê a igreja monstruosa do Seminário, retórica de vidraças e nichos, as pombas que pousam na cabeça e nos braços do marquês e vê-me em baixo, ajoelhado, entre alguns dos seus homens.  O rei olha para mim com simpatia.  Fui condenado por ser um dos assassinos da sua amante favorita, D. Inês.  Alguém quis defender-me, dizendo que eu era um patriota.  Que desejava salvar o Reino da influência espanhola.  Tolice.  Não me interessa o Reino.  Matei-a para salvar o amor do rei.  D. Pedro sabe-o.  Olho de novo para a janela onde se debruça.  Ele diz um gracejo.  Toda a gente ri.
       — Preparem-me esse coelho, que tenho fome.
       O rei brinca com o meu nome.  O meu apelido é Coelho.
       O que este homem trabalhou na nossa obra!  Levou o cadáver da amante de uma ponta a outra do país, às costas da gente do povo, entre tochas e cantos fúnebres.  Foi um terrível espetáculo, que cidades e lugarejos apreciaram.
       Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu Senhor.  Levanto-me e fico bem defronte do edifício.  Vejo no rés-do-chão o letreiro da Barbearia Vidigal e o barbeiro de bigode louro que veio à porta assistir ao meu suplício.  Vejo a janela manuelina e o rei esmagado entre os blocos dos dois prédios ao lado.
       — Senhor — digo eu —, agradeço-te a minha morte.  E ofereço-te a morte de D. Inês.  Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.
       — Muito bem — respondeu o rei.  Arranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-mo.
       De novo me ajoelho e vejo os pés dos carrascos de um lado para o outro.  Distingo as vozes do povo, a sua ingénua excitação.  Escolhem-me um sítio das costas para enterrar o punhal.  Estremeço de frio.  Foi o punhal que entrou na carne e cortou algumas costelas.  Uma pancada de alto a baixo do meu corpo, e verifico que o coração está nas mãos de um dos carrascos.  Um moço do rei espera com a bandeja de prata batida estendida sobre a minha cabeça, e onde o coração fumegante é colocado.  A multidão grita e aplaude, e só o rosto de D. Pedro está triste, embora, ao mesmo tempo, se possa ver nele uma luz muito interior de triunfo.  Percebo como tudo isto está ligado, como é necessário que todas as coisas se completem.  Ah, não tenho medo.  Sei que vou para o inferno, visto que sou um assassino e o meu país é católico.  Matei por amor do amor — e isso é do espírito demoníaco.  O rei e a amante também são criaturas infernais.  Só a mulher do rei, D. Constança, é do céu.  Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o perdão a todas as ofensas.  Detesto a rainha.
       O moço sobe a escada com a bandeja onde o meu coração é um molusco quente e sangrento.  Vê-se D. Pedro voltar-se, a bandeja aparecer perto do parapeito da janela.  O rei sorri delicadamente para o meu coração e levanta-o na mão direita.  Mostra-o ao povo, e o sangue escorre-lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo.  Ouvem-se aplausos.  Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade estar à frente de um povo assim.  Felizmente o nosso rei encontra-se à altura do seu cargo, entende a nossa alma obscura, religiosa, tão próxima da terra.  Somos também um povo cheio de fé.  Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade.  Somos todos loucos.
       Tombei com a face direita sobre a calçada e, movendo os olhos, posso aperceber-me de um pedaço muito azul de céu, acima dos telhados.  Vejo uma pomba passar em frente da janela manuelina.  O claxon de um carro expande-se lìricamente no ar.  Estamos nos começos de junho.  Ainda é primavera.  A terra está cheia de seiva.  A terra é eterna.  À minha volta dizem obscenidades.  Alguém sugere que me cortem o pénis.  Um moço vai perguntar ao rei se o podem fazer, mas este recusa.
       — Só o coração — diz.  E levanta de novo o meu coração, e depois trinca-o ferozmente.  A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, e encomenda a alma ao Diabo.  Eu gostaria de poder agradecer a este povo bárbaro e puro as suas boas palavras violentas.
       Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro, e vejo os seus maxilares movendo-se ligeiramente.  O rei come o meu coração.  O barbeiro saiu do estabelecimento e está a meio da praça com a sua bata branca, o seu bigode louro, vendo D. Pedro a comer o meu coração cheio de inteligência do amor e do sentimento da eternidade.  O marquês Sá da Bandeira é que ignora tudo, verde e colonialista no alto do seu plinto de granito.  As pombas voam à volta, pousam-lhe na cabeça e nos ombros, e cagam-lhe em cima.  D. Pedro retira-se, depois de dizer à multidão algumas palavras sobre crime e justiça.  Aclama-o o povo mais uma vez, e dispersa.  Os soldados também partem, e eu fico só para enfrentar a noite que se aproxima.  Esta noite foi feita para nós, para o rei e para mim.  Meditaremos.  Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do comum amor à eternidade.  O rei estará insone no seu quarto, sabendo que amará para sempre a minha vítima.  Talvez não termine aí a sua inspiração, e ele se torne cada vez mais cruel e mais inspirado.  O seu corpo ir-se-á reduzindo à força de fogo interior, e a sua paixão será sempre mais vasta e pura.  E eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração.  D. Inês tomou conta das nossas almas.  Ela abandona a carne e torna-se uma fonte, uma labareda.  Entra devagar nos poemas e nas cidades.  Nada é tão incorruptível como a sua morte.  No crisol do inferno manter-nos-emos todos três perenemente límpidos.  O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração para geração.  Que ninguém tenha piedade.  E Deus não é chamado para aqui.


HELDER, Herberto.  "Teorema", in: Os Passos em Volta.  3a ed. Editorial Estampa, 1970

O JARDIM DA BARONESA, Maria Isabel Barreno


O  JARDIM DA BARONESA

 A baronesa tinha um belo jardim. Deste cuidava um jardineiro, velhote, um artista. A baronesa sentava-se  no jardim de manhã cedo e ao fim da tarde, olhando à sua volta com prazer.
O merceeiro da terra enriqueceu, como acontece muito aos merceeiros. Pôde realizar o maior desejo da mulher: comprou uma bela casa, com um jardim à frente. Nem o merceeiro nem a mulher pensavam em  ter criados. O trabalho de que precisavam em feito por eles. sempre haviam vivido assim. A mulher  do merceeiro esfalfava-se  naquela casa enorme. E tinha que cuidar do seu jardim.
Ela sonhara ter uma casa com um jardim tão lindo como o da baronesa. Tanto se esfalfou que conseguiu. Mas o jardim da baronesa existia para ser olhado com satisfação pela baronesa. E o jardim do merceeiro existia para ser igual ao da baronesa: a  mulher do merceeiro  não tinha nem tempo para olhá-lo.

Maria Isabel Barreno, Contos Analógicos

Adília Lopes

                          (copiado de Sophia)

Antígona
não aprendeu
a ceder
aos desastres


                                      (copiado de Agustina)

Eva não era má. Adão também não. Eva e Adão eram novos de mais na Terra como nós todos.

Adília Lopes

Notícia de Torto , Adília Lopes

Édipo e suas filhas Antígona e Isménia


"Vinte anos de psiquiatria deixaram-me com mais 40 kg e uma distensão abdominal que me dá lugar sentado em todos os transportes públicos. Ao fim e ao cabo, sou uma veterana de guerra. Há 20 anos eu tinha lido as tragédias gregas e reconhecia-me em Antígona, Electra e Ifigénia. Cedo percebi porém que não vale a pena falar em Sófocles e em Eurípides aos psiquiatras pela simples razão de que os psiquiatras não os leram. Sófocles e Eurípides só entrarão para o vocabulário dos psiquiatras no dia em que forem os nomes do último grito em psicotrópicos. O mesmo se pode dizer do famoso complexo de Édipo, de que os psiquiatras, como toda a gente, sabem umas banalidades aprendidas em más traduções espanholas. O complexo de Édipo só lhes interessará verdadeiramente no dia em que for o nome de um complexo urbanístico de luxo, com piscinas e palmeiras." 


Adília Lopes

DA OFERTA E DA PROCURA | Ana Luísa Amaral


DA OFERTA E DA PROCURA

Com tanta angústia em stock
não sei o que fazer
acumulada é tanta
que o coração assim
não cabe mais

Vendo-a barata, avulso.
à vontade de bolso ou contentor,
na quantidade exacta
que o desejo
traz

Ou troco um quilo dela
por grama de suor

(ou meio grama de paz)

Ana Luísa Amaral, Inversos

INÊS E PEDRO: QUARENTA ANOS DEPOIS | Ana Luísa Amaral

 

INÊS E PEDRO: QUARENTA ANOS DEPOIS

É tarde. Inês é velha.
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
«Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!»

Mas isto Inês nem ouve:
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricot de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora
uma artrose tornou tão reticentes.

Inês é velha, hélas,
e Pedro tem caibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando as chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.

O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurónios).
Mais sábia e precavida (sem três dentes
da frente),
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.

 Ana Luísa Amaral,  Inversos