Comunidade de Leitores na Biblioteca

a pensar na Comunidade de Leitores, de 30 de Novembro,  orientada por Rui Manuel Amaral

Livro: O túnel, de Russel Edson 

UMA REPRESENTAÇÃO NO TEATRO DOS PORCOS

      Era uma vez um teatro de porcos onde porcos representavam como homens, se os homens fossem porcos. 
     Um porco disse, eu serei um porco num campo que encon­trou um rato que está a ser comido pelo mesmo porco que está no campo e o qual encontrou o rato, o que estou a representar como a minha contribuição para a arte de representar.
Oh sejamos apenas porcos, gritou um porco velho.
E logo os porcos saíram em tropel para fora do teatro gri­tando, só porcos, só porcos...

 (Edson, Russel, O túnel, Assírio  & Alvim)

Um Auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett

 Excerto de uma comunicação de Ana Isabel Vasconcelos (disponível aqui)

[...]"Trata-se do drama precisamente intitulado  Um Auto de Gil Vicente, cuja acção  decorre na Corte de  D.  Manuel, tendo  como pólos de actuação a figura  de Gil Vicente e a de Bernardim Ribeiro. Desta  comparação, explica Garrett «fiz  nascer todo o interesse do meu drama», fixando-o num facto  notável: a  partida de  D. Beatriz, filha de D. Manuel, para Sabóia, em resultado do acordo matrimonial estabelecido. Neste acontecimento, cujos preparativos nos ocupam desde o início do 1º acto, entrelaçam-se várias e enredadas teias amorosas, destacando-se os amores, socialmente inaceitáveis e moralmente reprováveis, entre a Princesa, então já Duquesa, e o poeta Bernardim Ribeiro. Do nosso  ponto de vista, os afectos entre Bernardim e Beatriz vão pautar a situacionalidade de todas as outras personagens, constituindo-as em três grupos: as que têm conhecimento desse amor, como é o caso de Paula, de Pêro Safio e do próprio D.  Manuel; as que dele suspeitam, como é o caso dos  embaixadores italianos; e as que o ignoram, que são as restantes personagens, conjunto de uma importância bastante reduzida na totalidade da acção dramática. Do pequeno universo que partilha este segredo, destaca-se Paula Vicente, filha de mestre Gil e também ela comediante, que favorece os encontros clandestinos entre o poeta e  a Infanta.  Acontece que ela  mesma está apaixonada por Bernardim, chegando este amor não correspondido a  ter um efeito quase pernicioso, pelo sentimento momentâneo de revolta devido à posição subalterna que detémr elativamente à filha do monarca. Beatriz, modelo de virtude e abnegação, depende desta sua confidente, única testemunha do momento de sofrimento por que está a passar.
Bernardim, indivíduo  de excepção, que se afasta voluntariamente de todos os outros, é caracterizado como poeta e louco. Apaixonado pela Infanta, a quem dedica o seu livro das «Saudades», opta, como desfecho, pelo que tomamos como suicídio, não tendo intentado qualquer processo de luta para alterar o percurso por outros traçado. A resignação de ambos e a postura que assumem, desde o início, em não discutir o que fora socialmente aceite e nacionalmente conveniente é um traço que acentua, no drama, o clima de desespero. Em termos de desenlace, não há qualquer alteração à situação que se explicitara  logo inicialmente e que se atribuía a constrangimentos sócio-políticos incontornáveis. Perante esta realidade, o desejo de morte como libertação para o «mal de amor» é expresso pelos amantes e sublinhado pelos sucessivos desmaios de Beatriz.
Dando conteúdo à hipotética  desconfiança, por parte da corte italiana, relativamente a uma  possível relação amorosa entre  D. Beatriz  e um qualquer cavaleiro português, compõe Garrett três personagens representantes, em Lisboa, do Duque de Sabóia, que, numa cena específica despoletada por uma carta escrita por Beatriz, expressam os seus receios em terem ainda «grande tormenta» antes
de iniciada a viagem. Estes emissários estrangeiros são também habilmente utilizados pelo autor para, favorecendo um  enquadramento histórico mais global, servirem de «olhar do outro» sobre a realidade portuguesa, nomeadamente no que diz respeito a apreciações estético-literárias, a propósito do teatro vicentino, e à avaliação do desempenho dos portugueses na epopeia dos descobrimentos. Estas apreciações denotam, no primeiro caso, alguma censura pela falta de conhecimento da literatura clássica, e, no  segundo,  a pretensão de partilha dos louros pelos sucessos nas navegações marítimas. As referências a aspectos históricos e culturais concretos são dispersas ao longo do texto,  servindo para  compor a moldura histórica de época. Desde  a referência a monumentos e razões apresentadas pelo próprio monarca para a sua edificação, a uma neutra referência à viagem de Vasco da Gama, a uma observação crítica aotribunal da Inquisição, a uma apreciação comparativa entre o reinado de D. JoãoII e o de D. Manuel, a uma simples alusão à invenção da imprensa, tudo são apontamentos que,  no seu conjunto, referenciam  a época em causa. A caracterização da vida palaciana na corte de D. Manuel é feita pelo próprio monarca em tom de satisfação:

DOM MANUEL
Barão, podeis dizer em Itália que nem só de marfim e especiarias se trata na corte de Lisboa. Trazemos guerra, e mandamos nossos galeões a pelejar e traficar, nas quatro partes de que hoje – graças aos nossos pilotos! – se compõe o mundo; mas em casa cultivamos as artes da paz.

Ao expor-se em cena, D. Manuel confirma a leitura que as outras personagens dele já perspectivaram: magnânimo e, sobretudo, exemplo de tolerância e liberdade, características estas sublinhadas como favorecendo as condições imprescindíveis para o florescimento do teatro vicentino. A admiração pela produção de Gil Vicente leva a que este seja protegido pelo monarca, ocupando um lugar imprescindível nos divertimentos reais. «Compositor-mor de momos e chacotas, comédias, tragicomédias e autos», dedica-se também ele à arte de representação, integrando o elenco da companhia que dirige. É,  sem dúvida, sobretudo Gil Vicente, o dramaturgo, que agora é lembrado, pois o  seu auto, como outros estudiosos já observaram, não passa de um «pormenor episódico», aproveitado para estabelecer um breve confronto entre a escrita dramática vicentina e a composição poética de índole romântica, aqui da  autoria de Bernardim Ribeiro. Este, por seu lado,  mostra-se incapaz de valorizar os autos vicentinos, «que trazem embelecada esta corte de comediantes, que de mais não cuidam»16. A figura de Gil Vicente vai-se compondo ao longo do texto por referências váriasdadas por outras personagens, mas é Paula, porque afectivamente mais próxima, quem mais profundamente o caracteriza:

PAULA
Quem tivera aquela paixão de arte que o domina, aquele entusiasmo pela beleza ideal desse mundo de ficções que se criou e em que vive; aquela cegueira ditosa que lhe não deixa ver a miserável realidade que o cerca! O meu pobre pai, como ele vive enganado! Inda bem. – Cuida que o avaliam, que o entendem.  As sublimes criações do seu engenho, as graciosas pinturas de seu estilo, aplaudem-nas. Como, porquê? – Porque é moda, porque os fazem rir às vezes.

A imagem tradicional do poeta incompreendido numa corte que só aprecia quem a faz rir cola-se à  imagem de Gil Vicente, personagem que, adianta a própria filha, busca iludir-se, refugiando-se  no mundo  das ficções. Desprezando o tom satírico tão característico dos  textos vicentinos, e imbuído agora do perfil romântico do teatro moderno, Garrett apostou, decididamente, no motivo amoroso e no sofrimento decorrente da impossibilidade da sua concretização. Mais do que o amor é a saudade o sentimento que vai permanecer. O próprio monarca, na última cena, vacila perante a justeza  da decisão tomada, emprestando ao drama um final melodramático:

DOM MANUEL (perante Beatriz desmaiada)
O último adeus, minha filha, um abraço ainda! […] Tomou-a o susto. – Filha! […]
Eu constrangi sua vontade. – Meu Deus, se eu matei a minha filha!

Esta ressurreição de Gil Vicente e do seu tempo, mais do que do teatro vicentino, foi ainda apenas temporária e sobretudo com o intuito de fazer renascer o teatro em Portugal.
Quanto aos textos de Mestre Gil, o seu regresso à cena só aconteceu muitos anos mais tarde, mais precisamente em 1911, através de uma adaptação da responsabilidade de Afonso  Lopes Vieira, levada a cena no Teatro Nacional. A Companhia Amélia Rey-Colaço - Robles Monteiro recolheu a  lição e, entre 1940 e 60, incluiu, pelo menos dez vezes, o Auto da Barca do Inferno no seu repertório de teatro clássico. Nesses anos 40 e 50, porém, a vulgarização da peça ficou a dever-se sobretudo ao Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra, que, pela mão do Professor Paulo Quintela, a fizeram representar «acomodada ao gosto dramático moderno».
Ana Isabel Vasconcelos,«A propósito de Gil Vicente», in Actas do Colóquio Internacional, O riso na cultura medieval.

Novas Cartas Portuguesas: "há 38 anos foi histórico, agora é contemporâneo" [Ana Luísa Amaral]



[...] é muito interessante porque elas, ao desmontarem a noção de autoria, desmontam a noção de autoridade, questionam a autoridade social, a ditadura. Mas ao estenderem isso até agora, por mais 40 anos, no fundo é a própria autoridade social e a ideia de poder das nossas sociedades de hoje em dia, de controlo de tudo, que está também a ser posta em causa. Há um estudo feito, por exemplo, na Universidade de Aveiro que diz que as poesias são todas da Teresa Horta. Não são. Parece que até são poucas.

O que acontece é que elas exercitam a escrita umas das outras. Trabalham também com o conceito de alteridade, com a importância do outro. O outro que traz o seu texto. É quase uma cooperativa literária. É uma utopia, mas é uma utopia que tem resultados práticos. É como se provasse que a utopia é possível. E, depois, há a intertextualidade que percorre o livro. O livro do ponto de vista literário é riquíssimo, tem referências históricas, culturais, literárias de diversíssima ordem, umas mais, outras menos óbvias. Logo na primeira carta, quando se fala de Outubro e Maio, são os vários maios importantes na história portuguesa, europeia e mundial: o Primeiro de Maio, o Maio de 68, o mês de Maria, o Armistício. E há os diálogos intertextuais com outros escritores: Herberto Helder, Alexandre O'Neill, Eugénio de Andrade, a poesia trovadoresca, Bernardim Ribeiro. É toda a literatura portuguesa que é percorrida e não só, é Lévi-Strauss, por exemplo. A literatura e a história mundiais são aqui reactivadas, mas de uma forma nova. [...] Ana Luísa Amaral

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OUTONO | Russell Edson

OUTONO

Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa segurando-as com os braços esticados dizendo aos pais que era uma árvore.
Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala pois as tuas raízes podem estragar a carpete.
Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as folhas.
Mas os pais disseram olha é outono.
Russell Edson

A pensar na Comunidade de Leitores.



«'Outono' não é exactamente um poema.», observa Rui Manuel Amaral. «Também não é propriamente um conto curto. É algo que fica a meio caminho entre um género e outro. Ou que, de certa forma, parece combinar os dois. Os estudiosos chamam-lhe 'prosa poética'. Uma espécie de ornitorrinco literário. É justamente essa ambiguidade, essa condição de coisa escorregadia, desarrumada e difícil de classificar que me apaixona na grande criação literária. A obra de Russell Edson é um dos melhores exemplos disso mesmo: uma poderosa afirmação de liberdade, de negação de categorias e fronteiras. E este conto-poema-ou-o-que-lhe-queiram-chamar é uma obra-prima desse género singular: não é poesia, não é prosa, é grande literatura.» [daqui]

Rui Manuel Amaral, no Cerco


Hoje foi assim...
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Saramago - 16/11

Sou da Azinhaga, uma aldeia do concelho da Golegã, no Ribatejo. Os meus pais eram gente do campo. Nasci numa família camponesa sem terra. O meu avô Jerónimo e a minha avó Josefa tinham uma pequeníssima criação de porcos. Viviam disso, com as pocilgas ao lado da casa. O meu pai tinha feito a Guerra de 1914-18 na artilharia. No regresso decidiu sair da terra e emigrar. Foi para a PSP. Aos dois anos, o resto da família transferiu-se. Eu, a minha mãe e um irmão meu mais velho, que viria a morrer em Dezembro de 1924, poucos meses depois de estarmos em Lisboa. Se mal vivíamos, mal continuámos a viver. O ordenado do polícia era uma coisa ínfima, mas era outra vida.

A partir dos meus 5 ou 6 anos, primeiro com a família, depois sozinho, passava todo o tempo na terra. O que é importante nas minhas recordações formativas, tem muito mais que ver com o campo, do que com a cidade. A primeira coisa que fazia quando chegava à terra, nas férias grandes, era tirar os sapatos. A última coisa que fazia, quando tinha de voltar a casa, em Outubro, para regressar à escola, era calçar os sapatos. Durante esses três meses os pés tinham crescido e não entravam facilmente nos sapatos. Isto acontece até aos 15 ou 16 nos, e corresponde a um período muito vivido na aldeia.

Um dia resolveu-se levar os porcos à feira de Santarém. Da Azinhaga até lá, pelo campo, serão uns 15 ou 20 km. Saímos muito perto do fim da tarde e dormimos no caminho, na cavalariça de uma quinta, com os porcos recolhidos a uma pocilga. Não consigo, nem quero esquecer, o cheiro dos animais, os ruídos dos cavalos batendo com os cascos, o remoer da comida. Foi uma noite mágica. Tínhamos de acordar muito cedo, aí pelas cinco da madrugada, ou até um pouco antes. Quando me levanto e saio para um grande pátio, vejo a lua, a luz, o luar... Fiquei paralisado de espanto, de emoção, pela intensidade daquela luz. Apesar da minha cara de pau e da aparente frieza, sou uma pessoa que se emociona com uma facilidade incrível. Sempre fui assim. Coisas de uma simplicidade extraordinária podem emocionar-me até à lágrima. São infinitos os momentos de emoção.
O meu pai deu-me uma vez uma bofetada totalmente injusta e disse-lho muito mais tarde, mas não sofri os açoites que naquela altura eram regra. Eu, também, era uma criança fácil. Sobretudo melancólica. Quando estava na terra, muitas vezes saía de casa com um bocado de pão no bolso e uma rodela de chouriço e andava horas e horas naqueles campos, quase sempre sozinho. Sentava-me à beira do rio, não como o Ricardo Reis, mas creio que estava a preparar-se ali a pessoa em que me tornei.

O passado não cura. Deixa-se curar. No fundo trata-se de saber se aquilo que nos aconteceu é verdadeiramente importante ou não. Se as coisas não são importantes, nem vale a pena fazermos um esforço para reavivá-las, porque já se diluíram, estão mortas. Num quadro geral de meios-tons, de que o passado está cheio, tudo tem importância, mas tudo se relativiza mutuamente. Pode acontecer que algumas coisas não seja possível perdoá-las.

Se olho para trás, além da bofetada do meu pai, que não tinha nenhuma razão, e da qual não me esqueci, o que não perdoo é a história que rodeou o Evangelho Segundo Jesus Cristo, e que me fez sair de Portugal. Já passaram mais de dez anos, mas não esqueço. Também não importa nada. Eu faço a minha vida, as pessoas que cometeram esse disparate - só lhe chamo disparate nesta altura - fazem a sua própria, e acabou, mas não contem comigo. É algo de muito profundo. Detesto a hipocrisia. Não suporto aquele que, por natureza, ou por qualquer tipo de deformação moral, se transforma num hipócrita. O que se fez, seria compreensível se vivêssemos numa ditadura. É essa a regra. Agora, em democracia, dizer que um livro não pode representar o país, porque o povo português é maioritariamente católico, é algo que não admito.

Sou uma pessoa tranquila, em relação à religião. Fui baptizado, mas não tive educação religiosa. Nunca senti nenhum apelo emocional. Sou simplesmente um ateu, que nem sequer é capaz de conceber, mesmo só como construção mental, a possibilidade da existência de um Deus.

O dia mais importante da minha vida, à luz dos últimos 18 anos que vivi, foi o encontro com a minha mulher. É um mundo outro que nasce. É um mundo, que sendo o mesmo, o modo de vivê-lo mudou radicalmente com a chegada de Pilar. Se eu tivesse morrido um ano antes de a ter conhecido, teria morrido muito mais velho do que sou agora.

No plano da minha vida activa, há um tempo em que determinada decisão ganha corpo, não duvida de si mesma e de repente manifesta-se. Quando em 1975 perdi o meu emprego no «Diário de Notícias», onde era director-adjunto, encontrei-me numa situação bastante curiosa. Foi decretado o estado de sítio nos últimos dias de Novembro. Não se podia entrar, nem sair de Lisboa. O Mário Castrim e eu tínhamos um encontro marcado para Évora, onde nos reunimos depois de levantado o estado de sítio. Nessa conversa entre militantes do PCP, foi levantada esta questão: agora que se acaba o «DN», seria bom que o Partido tivesse um jornal. No dia seguinte fui ao centro de trabalho do PCP, na Avenida António Serpa, e falei com um dos responsáveis. Comuniquei-lhe que os camaradas do Alentejo tinham manifestado aquela vontade. A resposta que obtive foi a de que já estavam a pensar nisso. Achei que era óptimo e disponibilizei-me para o que fosse necessário. Então nasceu «o diário». Eu tinha dito, «se precisarem de mim, chamem-me». Precisaram de toda a gente ligada ao Partido. Muitos que estavam no «DN» e tinham perdido os seus empregos, transitaram para «o diário». Excepto eu. No fundo, talvez isso tenha razões, para quem as considera assim. Quando eu fui nomeado director-adjunto do «DN» decidi suspender a minha relação orgânica com o PCP. Porque não estava ali para receber indicações ou instruções sobre o que deveria ou não ser publicado. Na parte que me coubesse, a responsabilidade era minha. Vem o 25 de Novembro, acontece aquilo e fico à espera. Bem, no fundo não fiquei à espera que me chamassem, porque intuía, tinha-me apercebido o suficiente para ver que eu não tinha cumprido o meu dever. Não que me negasse a cumprir, mas simplesmente porque não reconhecia esse dever como tal. Portanto, com 53 anos, decido tentar finalmente saber o que é que eu poderia chegar a ser como escritor. É nessa altura que vou para o Alentejo, recolho material, começo a viver de traduções de francês. Em 1977 publico o Manual de Pintura e Caligrafia, em 78 o Objecto Quase, em 80 o Levantado do Chão, em 82 o Memorial do Convento. A partir daí começa outra vida. Essa é também uma das coisas que não perdoo. Continuo a ser militante. A única hipótese que não venha a sê-lo, não é que me separe do partido, é que o partido se separe de mim. No sentido de que o partido se converta numa tal coisa, que eu não possa reconhecer-me lá.

Houve um momento em que imaginámos que o mundo podia ser diferente. A prova de que será possível mudar o mundo está em que, desde a sua existência, o mundo não tem feito outra coisa, senão mudar. Uma das causas da frustração de muita gente é que mudou numa direcção, provavelmente previsível com um pouco mais de atenção, mas que a nossa capacidade de ilusão ou de esperança imaginou poder conduzir por outro destino. Não foi isso que aconteceu. Por isso levanto o debate da democracia.

Quando disse, com grande escândalo, que já não celebro o 25 de Abril, a questão é: porque merda tenho de celebrar o 25 de Abril? Tenho um imenso respeito pelas pessoas que o fizeram, mas um enorme desprezo pelas pessoas que o desfizeram. Hoje temos uma censura que se entranha na pele. Há uma autocensura voluntária, ou melhor, resignada. A autocensura de antes do 25 de Abril tinha uma grande diferença: não era resignada. A censura que sabíamos estar lá fora à nossa espera condicionava a expressão do pensamento, mas a nossa atitude em relação à necessidade de nos autocensurarmos não era de resignação. Não quer dizer que fôssemos melhores jornalistas do que somos agora, mas havia uma diferença imensa. Tínhamos contra quem lutar. Agora, embora se saiba contra quem deveríamos lutar, luta-se pouco.

A vida é uma lição para nós, mas talvez também tenhamos algo para ensinar à vida. Por isso, se nos questionamos sobre o que estamos a fazer aqui, acho-me tão ignorante hoje como quando, aos 7 ou 8 anos, me sentava à beira do rio, vendo a água passar.
[Expresso (1683 - Página 34) - Sábado, 29 de Janeiro de 2005]

Novas Cartas Portuguesas



da Breve Introdução de Ana Luísa Amaral a Novas Cartas Portuguesas

"Mais relevante do que saber a verdadeira autoria de Cartas Portuguesas, foi o facto de a figura de Mariana Alcoforado passar de «uma sombra textual anónima» para «uma identidade pessoal e uma genealogia, familiar e nacional, que a configurou ( ... ) como epítome nacionalmente representativo da feminilidade e, aos olhos dos Portugueses, da identidade nacional em geral» (Klobucka 2006a: 19). Essa questão do mistério relativamente à autoria viria a ser de extrema importância para a recepção do livro Novas Cartas portuguesas - afinal, as autoras nunca revelaram publicamente quem assinava parcelar-mente os textos -, desestabilizando as noções fixas de autoria e de autoridade. Não menos relevante para a concepção de Novas Cartas terá sido a escolha de Cartas portuguesas como texto matricial justamente. pelo peso simbólico de que se revestia a figura de Mariana e pela imagem feminina que delas emergia: o estereótipo da mulher abandonada, suplicante e submissa, alternando entre a adoração e o ódio, praticando um discurso de paixão avassaladora por aquele (o cavaleiro) que se apaixonara também, mas partira depois, para não mais, regressar. É esta relação de amor e devoção, de subserviência  e autovitimização que as três autoras, três séculos depois os contornos mais gerais, vão desmontar e re-montar, estilhaçando  fronteiras e limites, quer das temáticas, quer da própria linguagem. "

Novas Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa (org. Ana Luísa Amaral=

Primeira Carta
Pois que toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou futura paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos.  E já foi dito que não interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício. 

A cena do ódio de Almada Negreiros por Mário Viegas




A Cena do ódio aqui.

[tudo a propósito do workshop Almada na Oficina das Palavras  que a Cátia e o Tiago estão a frequentar aqui]

Um Auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett (1838)

Um Auto de Gil Vicente                                                            

Um Auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett: próximo apeadeiro

 (fotografia de Paulo Cintra e Laura Castro Caldas - aqui)

 Para a semana começaremos o estudo de Um Auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett.

Um texto que é muito mais do que a história de um poeta que  ama uma princesa destinada a outro amor oficial e é amado por outra mulher que não ama ou julga não amar....

Texto de apresentação de Luís Miguel Cintra, aquando da encenação do texto pelo Teatro da Cornucópia.


ESTE ESPECTÁCULO

Sejamos desequilibrados, imperfeitos apaixonadamente impuros. Sejamos portugueses. É isso que nos parece dizer esta peça impura, que muitos acharão imperfeita, desequilibrada. Mas que é apaixonadamente portuguesa. Como também isso nos diz, e talvez não seja por acaso, todo o benditamente impuro génio dramático de Gil Vicente e muito em especial essas CORTES DE JÚPITER, que serão teatro oficial até mais não poder ser, mas que o pobre Vicente imaginado por Garrett apaixonadamente tenta ensaiar, contra tudo e contra todos, no meio de negócios de Estado e embaixadas estrangeiras, de mistura com paixões e desgostos de amor de poetas, princesas e actrizes, preso no seu próprio entusiasmo. As CORTES já são acima de tudo uma peça portuguesa e talvez sobre Portugal: são o roteiro de uma despedida. A despedida de uma menina. Uma princesa portuguesa parte para longe, para "o estrangeiro", deixa a sua terra, leva e deixa saudades. A festa da sua despedida é uma sumptuosa oposição de Portugal ao resto do Mundo. Uma afirmação de nacionalidade, um esconjuro do medo de partir, ao que parece e por sinal, destino português por excelência. As CORTES são, como toda a obra de Gil Vicente, profundamente portuguesas até na ironia com que cumprem a sua função oficial de anunciar o desfile náutico que no dia seguinte iria rivalizar com os "trionfi" dos italianos. São irónicas, inteligentes, impuras, misturando o tom nobre de um ou outro verso de ]úpiter, da Providência ou de Marte, figuras de cartão de inspiração ilustre (e de menos consequência que o épico concílio dos deuses de Camões) com as palhaçadas dos ventos, o romance Niña era Ia Ifanta, que apaixonou Garrett, e essa fabulosa e longa antevisão do cortejo, maravilhosamente fechada em jogos de cumplicidades internas à côrte, em graças, elogios e galanteios que quase já nos são incompreensíveis de tão profundamente efémeros mas a que Vicente confere a densidade poética de uma apoteose onírica. Tudo isto sem esquecer que Portugueses também são mistura. Sempre andaram berberes por aqui. Valha-nos isso! E lá vem a moura encantada do Algarbe, filha de Braxa e neta de Axa. Tudo com castelhano à mistura. E muitos axes e exes. Pois então? Tudo num punhado de versos.

Foi desta portuguesa "confusão" que Garrett gostou. Este teatro é que é o passado que apaixonadamente invoca quando se lhe mete na cabeça criar um novo repertório e construir o futuro do nosso teatro. (E seria isso um projecto português? Não lhe bastava, à portuguesa, escrever mais uma ou outra peça imperfeita e escrever um dia uma talvez obra-prima - o tal FREI LUÍS DE SOUSA? Quem acredita ainda em fazer escola para lá de deixar formoso exemplo?). Ficou depois o Dona Maria, ficou o Conservatório. Mas neste UM AUTO DE GIL VICENTE o que ainda hoje nos entusiasma é sobretudo o amor pela confusão, a paixão de um projecto. A própria ideia de cruzar as duas intrigas (a dos ensaios e representação do auto com a dos amores de Beatriz, Paula e Bernardim) é também a de um entusiasmo: como se o teatro se vivesse entre um suicídio por e o destino da nação, como se o teatro fosse tudo e nada ao mesmo tempo, como se fosse aquele único sítio em que toda a vida tem lugar, tanto as nossas paixões como os interesses do Estado. Parece-me que foi assim que Garrett pensou na sua peça. Pensou num palco onde houvesse espaço para tudo. E onde mais que tudo tivesse lugar a sua terra, os seus poetas, as suas mulheres, os seus actores, bispos, falcoeiros, pagens, reis, ministros e plebeus. Sofrendo todos com certeza de um mal comum, essa inimitável "saudade" que mais não é que uma especial e muito doce maneira de viver a paixão. E talvez sempre às voltas com a questão da liberdade. ("Eu constrangi sua vontade. Meu Deus, se eu matei a minha filha!", diz a culpa do rei no fim da peça). Este projecto de teatro não nos ficava mal adoptar.

UM AUTO DE GIL VIGENTE é também um pouco as "Viagens na Minha Terra" do teatro. Uma viagem pelo meu país sem ir mais longe que de Lisboa a Santarém. Também nesta peça pouco se passa mas de tudo se fala. Lá está, na abertura, em compére deste novo teatro português, uma versão do mesmo Sancho de que falam as "Viagens", a grotesca figura de Pero Safio, confidente e factotum de uma outra versão de D. Quixote, o sublime Bernardim. De Paula a Georgina não vai tão grande distância e menos ainda de Beatriz a ]oaninha. A "desordem" também é a mesma das "Viagens". E por entre esses amores vai passando todo Portugal, país de gente do mar, vai passando toda a cultura portuguesa, a poesia, a culta e a tradicional, o teatro, a arquitectura antiga, os descobrimentos, a política das artes, a sinceridade e a hipocrisia, os barões e os frades. De tudo se fala sem qualquer muito evidente unidade, num moderno e ousado desprezo pelas regras clássicas e um gosto de facto novo pela mistura dos estilos, pela convivência e debate dos registos dramáticos mais opostos e que vão do monólogo trágico à farsa, passando pelo melodrama ou pela alta comédia. Isto, a partir de uma intriga quase inexistente, apenas de uma situação de impasse amoroso (um poeta ama uma princesa destinada a outro amor oficial e é amado por outra mulher que não ama ou julga não amar). E nem o desfecho, alguma solução para o impasse, parece interessar Garrett. A sua nota ao suicídio de Bernardim, que se diria aliás um trecho das "Viagens", é isso que nos conta na sua ironia: Aqui atirei com ele ao mar por me era preciso. Creio que acima de tudo interessava a Garrett pôr Portugal em cena, sem qualquer intenção normativa, apenas por gosto de contemplar ou dar a ver. O quê? A nossa terra, as coisas portuguesas, a nossa generosidade. É alguma coisa. Mas este UM AUTO são apenas três actos gratuitos, leves. É um mero prazer cultural, é quase um exercício. E se não é verdade, foi assim que gostámos dele. São três actos que permitem três tipos de escrita dramática e três modos diferentes de mostrar a mesma gente em três locais de acção emblemáticos. E a esses três "quadros" vivos se vão colando todas as referências culturais possíveis sem medo de perder a medida, de passagem. É, de certo modo, uma estrutura aberta, livre. E a encenação assim a quis expor e sublinhar-lhe as dissonâncias.

Também por aí gostámos da peça. Por ser portuguesa assim. E sentimos que essa liberdade de escrita nos pedia que a manipulássemos, que não tivéssemos medo de a ela agarrar mais pedaços da "Menina e Moça" de que apaixonadamente gostamos, que à evocação de Gil Vicente acrescentássemos mais texto das CORTÊS e acrescentássemos até uma ou outra referência a um "jeito" já nosso de pegar nos seus autos. Pedia que não a tomássemos a sério demais. Achámos que podíamos e devíamos, sei pelo menos que me apeteceu, encontrar lugar em cena também para um Portugal que Garrett já não conheceu e que é hoje a nossa terra. A uma coisa sei que a peça de Garrett felizmente nos obriga: memória. O seu teatro defende a Liberdade e afirma uma necessidade de História. Para formar um novo repertório recorre à História, põe em cena Gil Vicente; para falar à sua época traz para cena D. Manuel e o Renascimento em Portugal, de forma mais ou menos fiel, não é isso que importa. E para nós, portugueses já do fim do século seguinte, a peça de Garrett pedia neste seu amor à História, novo trabalho da memória, um salto para o nosso tempo. Percebemos que pôr em cena a peça de Garrett era rever a nossa bandeira, tanto mais que estreamos a peça em co-produção com um Teatro Nacional. Fizémos um espectáculo que é um jogo livre com as suas cores vermelho e verde com esfera armiIar dourada como o sol e quinas azuis como o luar, a abrir e fechar cortinas de teatro. Depois de Garrett as representações da memória portuguesa foram outras. Não ficámos sobretudo com a alma apaixonada dos poetas nem com tantos exemplos como isso de tolerância e liberdade na condução dos destinos nacionais. A nossa memória portuguesa está cheia de fatos típicos de fadistas, campinos, minhotas e pescadores da Nazaré. Limpemos as cores da bandeira. O nosso espectáculo gostava de esvaziar a nossa bandeira da normalização das fardas, sejam elas de soldados, futebolistas ou executivos. Reivindicamos a generosidade portuguesa. Uma certa desordem. Por trás da nossa bandeira está a delicadeza da alma das nossas Beatrizes, a violência da paixão das nossas Paulas, o corpo de Bernardim. Quero acreditar no seu suicídio. Acabemos com os barões. Voltemos a ser marinheiros. Lugar para o coração dos nossos rapazes!
Luis Miguel Cintra

Dos textos nascem textos # momento 1

[fotograma de Lost in Translation]

Dos textos nascem textos  

[construímos o nosso texto a partir desta gaveta. A utilização do texto foi autorizada e, durante o processo de escrita, procuramos não torturar a gramática, nem ofender a ortografia. Tomámos, apenas, algumas liberdades poéticas]

Aprendi a sinfonia dos silêncios. Das esperas.
Sem ânsias do amanhã. Aprendi a conjugar o presente.
E a vivê-lo como se um passado não tivesse existido.
Os compassos da lenta descoberta.
Abriram as comportas do imaginário
e, timidamente, quiseram ser peixes voadores
Ensaiei a dança das palavras, pura.
Puros movimentos doces dançando de boca em boca
e com o mesmo desfecho: morrer ali.
Sem ter a noção do ontem, sem saber do amanhã.
E vi o encantamento soltar as asas, reclamando o peito pela cintura.
Envolvendo todo o corpo
Encantamento perdido, no começo do fim
E veio a ânsia, despida.
Com silêncio profundo
Que me faz pensar na vida.
E a graça, nua.
sem medo da liberdade
Sem temer.
E todo este movimento perpétuo
que me faz explodir de alegria,
viver no limiar das emoções,
deixar voar as palavras, sem medo....
....sem medo de arriscar    de viver.


Miguel Carvalho, Ana , Raquel,  Filipa ,  Inês  , Juliana, Cátia, Joana, Tiago

Teste de avaliação [Folhas Caídas]


E foi assim o teste...

NÃO TE AMO

Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.
E eu n'alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.

E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero

De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.

Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,

De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto

Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

Almeida Garrett
 
1.       É evidente que o amor sensual é aqui posto em contraste com o amor ideal (espiritual). Faça um levantamento de todas as expressões que conotam o amor sensual e as que se referem ao amor ideal. (25 pontos)

2.      Transcreva uma frase antitética, que se repete ao longo do poema e que exprime o drama psicológico do poeta. Em que consiste esse drama? Qual é, dentro deste contexto, a intenção da repetição (total ou desdobrada) da frase que transcreveu? (25 pontos)


3.      Prove, com base no texto, que  neste poema há uma  confissão implícita da impossibilidade de amar (25 pontos)


4.      Jacinto do Prado Coelho afirma que há, em toda a obra de Garrett, um tema constante, uma espécie de leitmotiv, que «é uma oposição dinâmica, uma permanente tensão entre a Luz e as Trevas». Se está de acordo com esta afirmação, tente confirmá-la, com base no texto. (25 pontos)


5.      Faça um estudo do estilo do poema, focando os pontos mais contrastantes com a estética clássica. (25 pontos)


6.      5.         Quase todos os poemas de Folhas Caídas apresentam um tom nitidamente dramático. Encontre, neste poema, marcas desse dramatismo e refira-se ao seus efeitos perlocutórios. (25 pontos)

 II

Tendo em conta que a poesia garrettiana revela um espírito renovador, não só quanto à concepção da mulher amada e do amor, mas também quanto aos aspectos formais, numa composição cuidada (mínimo 90 e máximo 110 palavras), refere-te à nova sensibilidade e à nova expressão poética, evidenciadas na lírica de Almeida Garrett. (50 pontos)

A Literatura

A Literatura |  Uma macieira que dá laranjas.

                                              Rui Manuel Amaral

O Corvo de Edgar Allan Poe, (trad. Fernando Pessoa)


O Corvo  [em inglês aqui]
Edgar Allan Poe

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigos, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
E a minhalma dessa sombra que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

Edgar Allan Poe, (trad. Fernando Pessoa)