Um Auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett

 Excerto de uma comunicação de Ana Isabel Vasconcelos (disponível aqui)

[...]"Trata-se do drama precisamente intitulado  Um Auto de Gil Vicente, cuja acção  decorre na Corte de  D.  Manuel, tendo  como pólos de actuação a figura  de Gil Vicente e a de Bernardim Ribeiro. Desta  comparação, explica Garrett «fiz  nascer todo o interesse do meu drama», fixando-o num facto  notável: a  partida de  D. Beatriz, filha de D. Manuel, para Sabóia, em resultado do acordo matrimonial estabelecido. Neste acontecimento, cujos preparativos nos ocupam desde o início do 1º acto, entrelaçam-se várias e enredadas teias amorosas, destacando-se os amores, socialmente inaceitáveis e moralmente reprováveis, entre a Princesa, então já Duquesa, e o poeta Bernardim Ribeiro. Do nosso  ponto de vista, os afectos entre Bernardim e Beatriz vão pautar a situacionalidade de todas as outras personagens, constituindo-as em três grupos: as que têm conhecimento desse amor, como é o caso de Paula, de Pêro Safio e do próprio D.  Manuel; as que dele suspeitam, como é o caso dos  embaixadores italianos; e as que o ignoram, que são as restantes personagens, conjunto de uma importância bastante reduzida na totalidade da acção dramática. Do pequeno universo que partilha este segredo, destaca-se Paula Vicente, filha de mestre Gil e também ela comediante, que favorece os encontros clandestinos entre o poeta e  a Infanta.  Acontece que ela  mesma está apaixonada por Bernardim, chegando este amor não correspondido a  ter um efeito quase pernicioso, pelo sentimento momentâneo de revolta devido à posição subalterna que detémr elativamente à filha do monarca. Beatriz, modelo de virtude e abnegação, depende desta sua confidente, única testemunha do momento de sofrimento por que está a passar.
Bernardim, indivíduo  de excepção, que se afasta voluntariamente de todos os outros, é caracterizado como poeta e louco. Apaixonado pela Infanta, a quem dedica o seu livro das «Saudades», opta, como desfecho, pelo que tomamos como suicídio, não tendo intentado qualquer processo de luta para alterar o percurso por outros traçado. A resignação de ambos e a postura que assumem, desde o início, em não discutir o que fora socialmente aceite e nacionalmente conveniente é um traço que acentua, no drama, o clima de desespero. Em termos de desenlace, não há qualquer alteração à situação que se explicitara  logo inicialmente e que se atribuía a constrangimentos sócio-políticos incontornáveis. Perante esta realidade, o desejo de morte como libertação para o «mal de amor» é expresso pelos amantes e sublinhado pelos sucessivos desmaios de Beatriz.
Dando conteúdo à hipotética  desconfiança, por parte da corte italiana, relativamente a uma  possível relação amorosa entre  D. Beatriz  e um qualquer cavaleiro português, compõe Garrett três personagens representantes, em Lisboa, do Duque de Sabóia, que, numa cena específica despoletada por uma carta escrita por Beatriz, expressam os seus receios em terem ainda «grande tormenta» antes
de iniciada a viagem. Estes emissários estrangeiros são também habilmente utilizados pelo autor para, favorecendo um  enquadramento histórico mais global, servirem de «olhar do outro» sobre a realidade portuguesa, nomeadamente no que diz respeito a apreciações estético-literárias, a propósito do teatro vicentino, e à avaliação do desempenho dos portugueses na epopeia dos descobrimentos. Estas apreciações denotam, no primeiro caso, alguma censura pela falta de conhecimento da literatura clássica, e, no  segundo,  a pretensão de partilha dos louros pelos sucessos nas navegações marítimas. As referências a aspectos históricos e culturais concretos são dispersas ao longo do texto,  servindo para  compor a moldura histórica de época. Desde  a referência a monumentos e razões apresentadas pelo próprio monarca para a sua edificação, a uma neutra referência à viagem de Vasco da Gama, a uma observação crítica aotribunal da Inquisição, a uma apreciação comparativa entre o reinado de D. JoãoII e o de D. Manuel, a uma simples alusão à invenção da imprensa, tudo são apontamentos que,  no seu conjunto, referenciam  a época em causa. A caracterização da vida palaciana na corte de D. Manuel é feita pelo próprio monarca em tom de satisfação:

DOM MANUEL
Barão, podeis dizer em Itália que nem só de marfim e especiarias se trata na corte de Lisboa. Trazemos guerra, e mandamos nossos galeões a pelejar e traficar, nas quatro partes de que hoje – graças aos nossos pilotos! – se compõe o mundo; mas em casa cultivamos as artes da paz.

Ao expor-se em cena, D. Manuel confirma a leitura que as outras personagens dele já perspectivaram: magnânimo e, sobretudo, exemplo de tolerância e liberdade, características estas sublinhadas como favorecendo as condições imprescindíveis para o florescimento do teatro vicentino. A admiração pela produção de Gil Vicente leva a que este seja protegido pelo monarca, ocupando um lugar imprescindível nos divertimentos reais. «Compositor-mor de momos e chacotas, comédias, tragicomédias e autos», dedica-se também ele à arte de representação, integrando o elenco da companhia que dirige. É,  sem dúvida, sobretudo Gil Vicente, o dramaturgo, que agora é lembrado, pois o  seu auto, como outros estudiosos já observaram, não passa de um «pormenor episódico», aproveitado para estabelecer um breve confronto entre a escrita dramática vicentina e a composição poética de índole romântica, aqui da  autoria de Bernardim Ribeiro. Este, por seu lado,  mostra-se incapaz de valorizar os autos vicentinos, «que trazem embelecada esta corte de comediantes, que de mais não cuidam»16. A figura de Gil Vicente vai-se compondo ao longo do texto por referências váriasdadas por outras personagens, mas é Paula, porque afectivamente mais próxima, quem mais profundamente o caracteriza:

PAULA
Quem tivera aquela paixão de arte que o domina, aquele entusiasmo pela beleza ideal desse mundo de ficções que se criou e em que vive; aquela cegueira ditosa que lhe não deixa ver a miserável realidade que o cerca! O meu pobre pai, como ele vive enganado! Inda bem. – Cuida que o avaliam, que o entendem.  As sublimes criações do seu engenho, as graciosas pinturas de seu estilo, aplaudem-nas. Como, porquê? – Porque é moda, porque os fazem rir às vezes.

A imagem tradicional do poeta incompreendido numa corte que só aprecia quem a faz rir cola-se à  imagem de Gil Vicente, personagem que, adianta a própria filha, busca iludir-se, refugiando-se  no mundo  das ficções. Desprezando o tom satírico tão característico dos  textos vicentinos, e imbuído agora do perfil romântico do teatro moderno, Garrett apostou, decididamente, no motivo amoroso e no sofrimento decorrente da impossibilidade da sua concretização. Mais do que o amor é a saudade o sentimento que vai permanecer. O próprio monarca, na última cena, vacila perante a justeza  da decisão tomada, emprestando ao drama um final melodramático:

DOM MANUEL (perante Beatriz desmaiada)
O último adeus, minha filha, um abraço ainda! […] Tomou-a o susto. – Filha! […]
Eu constrangi sua vontade. – Meu Deus, se eu matei a minha filha!

Esta ressurreição de Gil Vicente e do seu tempo, mais do que do teatro vicentino, foi ainda apenas temporária e sobretudo com o intuito de fazer renascer o teatro em Portugal.
Quanto aos textos de Mestre Gil, o seu regresso à cena só aconteceu muitos anos mais tarde, mais precisamente em 1911, através de uma adaptação da responsabilidade de Afonso  Lopes Vieira, levada a cena no Teatro Nacional. A Companhia Amélia Rey-Colaço - Robles Monteiro recolheu a  lição e, entre 1940 e 60, incluiu, pelo menos dez vezes, o Auto da Barca do Inferno no seu repertório de teatro clássico. Nesses anos 40 e 50, porém, a vulgarização da peça ficou a dever-se sobretudo ao Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra, que, pela mão do Professor Paulo Quintela, a fizeram representar «acomodada ao gosto dramático moderno».
Ana Isabel Vasconcelos,«A propósito de Gil Vicente», in Actas do Colóquio Internacional, O riso na cultura medieval.

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