Breve Sumário da História de Deus | crítica do Público


Breve Sumário da História de Deus
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"Tenho uma dor chamada Portugal" é um verso de Ruy Belo, o mesmo poeta de quem se ouvem, perto do final deste espectáculo, as palavras "Aqui - mulher terra mar / Aqui só pode ser a casa de deus". Belo é um dos "vencidos do catolicismo", como disse noutro poema (que termina com as palavras de Cristo, por sua vez repetindo um salmo de David: "Meu deus meu deus porque me abandonaste?"). As citações e referências cruzadas dariam para várias edições do PÚBLICO, tal é a riqueza da obra vicentina e da mitologia judaico-cristã. E deve haver inúmeras maneiras de falar deste espectáculo. Mas a ideia mais importante parece ser essa: deus e Portugal são duas fontes de mágoa. Será?
A sucessão de quadros bíblicos e de figuras alegóricas, na qual se propõe a inserção da história de Portugal, através das cores e armas portuguesas, é simultaneamente fiel ao espírito original da obra (também nas ironias) e adequada ao público e tempo presentes. Sujeitas à acção de Lúcifer, Belial e Satanás, as figuras vicentinas vão dizendo de sua justiça defronte de um tribunal que já está convertido. Trata-se de um teatro de comunhão, fiel aos princípios da época, que se compraz na dor. No final, fica tudo na mesma, e a esperança de protesto é escondida.
O grande interesse, a forte integridade, a beleza da forma e a função deste espectáculo (e de cada um dos seus elementos) podem ser sublinhados. O desenho de luz define a atmosfera e é impressionante; os figurinos contrastantes, ora discretos ora belos; o cenário forte e sugestivo; os sons evocativos; e tudo concorre para uma realização impecável e eficaz - no propósito de construir um rito teatral solene sobre a representação da mortalidade, da divindade e das penas da vida. A elocução e a dicção são esculpidas com cuidado para que tudo se entenda e ressoe bem, dando asas aos versos de Gil Vicente. Os actores representam com limpeza e brio. Afinal, o assunto é sério.

A solenidade geral do espectáculo leva o público a reproduzi-la, e é com certa devoção que se assiste a este espectáculo, desmontada numa ou outra cena dos diabos. Nas tentações de Cristo no deserto, por exemplo, a dramaturgia permite ao espectador saber mais que as personagens e, apropriando-se da acção, reagir a ela, rindo. No restante, tanto a peça como o espectáculo se assemelham a uma missa, reiterando a gravidade dos locutores. Este espectáculo da autoridade é de tal ordem que mesmo as máscaras de Lazarim são jogadas sem a anarquia requerida. Eu, que sou da facção mais chocarreira dos admiradores de Gil Vicente, e creio que a vitalidade da sua obra vem da fusão entre carnalidade e misticismo, julgo que tanta delicadeza, censurando os corpos, é de mais. Ainda assim, vê-se (das primeiras filas) alguma saliva escorrendo na boca de pelo menos um dos actores, e outros mais bravos dando o corpo ao manifesto com humildade circunstancial.
Como extrair significados destes aspectos formais? O cenário representa um albergue nocturno ou um campo de concentração nazi; Auschwitz, porventura, o campo a poucos quilómetros da católica Cracóvia. Num ano assombrado pelo desaparecimento de tantos artistas de teatro, Breve Sumário da História de Deus é o possível requiem. O holocausto somos nós?
Jorge Louraço Figueira [25.11.09 Público]


[Respeitando o crítico, discordamos dele,  a vitalidade dos textos vicentinos  não vem só da "fusão entre carnalidade e misticismo". Vêm da força das palavras. Não há contenção nos corpos, há tensão. O carnal está lá - que dizer daquele Satanás (Paulo Freixinho)? A Morte, se é dela que se fala quando se fala em delicadeza, não é excessivamente delicada, é subtil, mansa , porque sabe que todos lhe pertenceremos.]


Palavras de Jacob depois do sonho | Ruy Belo






[um dos textos que Nuno Carinhas faz dialogar com Gil Vicente]



Palavras de Jacob depois do sonho


Amei a mulher amei a terra amei o mar
amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar
De muitas delas de resto falei
Não sei talvez eu me possa enganar
foram tantas as vezes que me enganei
mas por trás da mulher da terra e do mar
É esse o seu nome e nele não cabe temor
Mas depois deste sonho sou obrigado a cantar:
Eis que o senhor está neste lugar
Porquê não sei talvez uma haste balance
talvez sorria alguma criança
Terrível não é o homem sozinho na tarde
como noutro tempo de esplendor cantei
Terrível é este lugar
Terrível porquê?

Não sei bem
Talvez porque o senhor pisa esta terra com os seus pés
(lembro-me até de que mandou tirar as sandálias a moisés)
Levanto os dois braços aos céus
Aqui - mulher terra mar -
Aqui só pode ser a casa de deus
.
Ruy Belo

Salmo 139 mudado por Herberto Helder


[um dos textos que Nuno Carinhas faz dialogar com Gil Vicente] 



 Ilda David

Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Sabes quando me sento e me levanto,
de longe escrutas as menores intenções,
reconheces a minha marcha e vigias o meu sono.
Nada de mim te é estranho.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Estás em frente do meu rosto, estás atrás das minhas co
e pousaste a tua mão sobre a carne do meu ombro.
– Oh, tua ciência é a mais prodigiosa.
Como fugir à tua Face, como evitar teu Espírito?
Acho -te nos campos celestes e nas funduras da treva.
Se voo nas asas da luz para o outro lado das águas,
agarra -me a tua mão que jamais me deixará.
E se as trevas sem astros se derrubam sobre mim,
para teus olhos as noites nada mais são do que luz.
Foste tu, eu sei, quem ergueu a minha carne,
quem lentamente me urdiu no ventre de minha mãe.
Maravilho -me ao pensar no enigma criado.
De há muito já decifravas labirintos da minha alma,
e vias erguer -se a máquina dos meus ossos obscuros.
Minha vida estava inscrita no teu livro encoberto.
Ainda antes do tempo fxaras os meus dias.
Mas os teus, os teus enigmas, quem os pode decifrar?
Que se estendem pelo tempo como na terra as areias.
Odeio os teus inimigos com um ódio absoluto.
Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Tu que sabes do meu sono e da minha marcha incerta,
dá -me o caminho secreto para a tua eternidade.
mudado por  Herberto Helder

Salmo 139
In Poesia Toda. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 169 -170.

Reconciliação | Else Lasker‑Schüler


[um dos textos que Nuno Carinhas faz dialogar com Gil Vicente

Reconciliação

de uma grande estrela cair no meu colo…
A noite será de vigília,

E rezaremos em línguas
Entalhadas como harpas.

Será noite de reconciliação –
Há tanto Deus a derramarse em nós.

Crianças são os nossos corações,
Anseiam pela paz, doces-cansados.

E nossos lábios desejam beijarse –
Porque hesitas?

Não faz meu coração fronteira com o teu?
O teu sangue não pára de dar cor às minhas faces.

Será noite de reconciliação,
Se nos dermos, a morte não virá.

de uma grande estrela cair no meu colo.

Else LaskerSchüler
In Baladas Hebraicas. Trad. João Barrento.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. p. 45.

Breve Sumário da História de Deus | Gil Vicente


Breve Sumário da História de Deus | Ensaios 04 from Teatro Nacional São João on Vimeo.

"As personagens não saem de cena. Podemos vê-las, podemos não vê-las, mas estão sempre lá, como que presas naquele espaço. Há camas encavalitadas de um lado, camas encavalitadas do outro, de madeira áspera, a remeter para os campos de concentração de Auschwitz-Birkenau."


"Os espectadores entram na sala do Teatro Nacional de São João e os actores já estão no palco. Há uma cortina de tule (quarta parede). Através dela, pode ver-se como se movem ou se deixam estar. É como se redistribuíssem papéis de uma peça já tantas vezes feita.  "



"Um anjo criado à imagem da estátua Anjo de Portugal (Joana Carvalho), que Carinhas viu no Museu de Arte Antiga e que pertence ao Convento de Cristo, apresenta o auto. Lúcifer (António Durães), o anjo caído, tem voz de trovão. Satanás (Paulo Freixinho) silva como o Gollum do "Senhor dos Anéis", trilogia cinematográfica de Peter Jackson, a partir de J.R.R. Tolkien. É ele que faz pecar Eva (Lígia Roque), que logo arrasta Adão (João Cardoso), e com ele toda a humanidade até Jesus Cristo (Daniel Pinto) a vir redimir.  
Pelo palco, desfila Abel (Pedro Frias), o justo pastor assassinado pelo irmão, Caim. E o inquebrável Job, atingido por sucessivas perdas. E Abraão (Jorge Mota), Moisés (Alberto Magassela), DavidIsaías (Mário Santos), a representar a Lei da Escritura. E, depois deles, João Baptista (João Pedro Vaz), Jesus Cristo. E, entre eles, o Mundo (Pedro Almendra), o Tempo (João Castro), a Morte (Alexandra Gabriel). A Morte, neste espectáculo, é pálida, frágil, andrógina. E Jesus Cristo transborda cor, calor, humanidades" (daqui)
 





PARA SABERES MAIS SOBRE O ESPECTÁCULO

à saída do TNSJ

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Fernão Lopes | apresentação

No palco

No palco do Teatro Nacional São João...
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Casamento de D. João I e D. Filipa de Lencastre | Fernão Lopes


Casamento de D. João I e D. Filipa de Lencastre – Crónica de D. João I (Fernão Lopes)


[...] E El Rei saiu daqueles paços em cima de um cavalo branco, em panos de ouro realmente vestido; e a rainha em outro tal, mui nobremente guarnida. Levavam nas cabeças coroas de ouro ricamente obradas de pedras de aljofar e de grande preço, não indo arredados um do outro, mas ambos a igual. Os moços de cavalos levavam as mais honradas pessoas que eram e todos de pé muito corregidos. E o arcebispo levava a Rainha da rédea. Diante iam pipas e trombetas e outros instrumentos que se não podiam ouvir. Donas filhas dalgo isso mesmo da cidade cantavam indo de trás, como é costuma de bodas. A gente era tanta que se não podiam reger nem ordenar pelo espaço que era pequeno dos paços à igreja e assim chegaram à porta da Sé, que era dali muito perto, onde dom Rodrigo, bispo da cidade, já estava festivalmente em pontifical revestido, Esperando com a cleresia. O qual os tomou pelas mãos, e demoveu a dizer aquelas palavras que a Santa Igreja manda que se digam em tal sacramento. Então disse a missa e pregação; e acabou seu ofício, tornaram El Rei e a Rainha aos paços donde partiram com semelhante festa, onde haviam de comer. As mesas estavam já guarnidas e todo o que lhe cumprira; não somente onde os noivos haviam de estar, mas aquelas onde era ordenado de comerem bispos e outras honradas pessoas de fidalgos e burgueses do lugar e donas e donzelas do paço e da cidade. E o mestre-sala da boda era Nuno Álvares Pereira, Condestável de Portugal; servidores de toalha e copa e doutros ofícios eram grandes fidalgos e cavaleiros, onde houve assaz de iguarias de desvairadas maneiras de manjares. Enquanto o espaço de comer durou, faziam jogos à vista de todos, homens que o bem sabiam fazer, assim como trepar em cordas e tornos de mesas e salto real e outras coisas de sabor; as quais acabadas, alçaram-se todos e começaram a dançar, e as donas em seu bando cantando a redor com grande prazer. [...] (ler tudo aqui)

O órfão | Kleist


A ler até  2 de Dezembro :
O órfão de Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist,
disponível
aqui.




Bernd Heinrich Wilhelm Von Kleist (1777-1811). 

Nasceu em Frankfurt-an-der-Oder, Brandenburg, numa família antiga da pequena nobreza, filho dum prestigiado capitão do exército prussiano. Destinado à vida militar, Kleist cedo se demitiu do exército para iniciar um período instável de leituras perturbadoras e de viagens na Europa devastada pelas guerras napoleónicas. A leitura de Kant deixou-o aniquilado, escrevendo à irmã Ulrike: " A ideia de que, nesta Terra, nada sabemos da verdade, absolutamente nada... abalou-me no mais íntimo da minha alma - o meu único objectivo, o meu objectivo supremo, caíu por terra; não resta nada." 
       A crise intelectual de 1801 frutificou em comédias, tragédias e contos. Em 1807, preso pelos Franceses ao tentar entrar em Berlim sem passaporte e acusado de espionagem, passou seis meses na cadeia. Em liberdade, publicou o seu primeiro conto, O Terramoto no Chile. Poucas horas antes de se suicidar, numa estalagem do lago Wannsee, perto de Berlim, escreveu à irmã : "não há lugar para mim nesta Terra". 
       Escolhera celebrar um pacto de suicídio com Henriette Vogel, que sofria de cancro. 
       Kleist publicou os seus oito contos, em dois volumes (1810 e 1811). 

As suas vítimas são heróis cuja dignidade pré-kafkiana consiste em resistirem até à última, antes de serem engolidos pelo caos ou absorvidos pela ordem, o que, feitas as contas e dada a arbitrariedade definitiva, vem a dar no mesmo.


SABER MAIS:

O trágico em Kleist, por Manuela de Sousa Marques. 



Fernão Lopes | apresentação

FERNÃO LOPES

Começamos hoje a preparar o textos que dará a conhecer Fernão Lopes ao 4.º A da EB1 da Corujeira. Preparem-se para saber quem foi este cronista e para saberem um pouco sobre o Mestre de Avis.


Na imagem: 
Assinatura de Fernão Lopes (Fernandus Lopi)
Consta de uma certidão de 14 de Dezembro de 1436, extraída a pedido do concelho e julgado de Riba de Lima, do Livro das Inquirições Régias, na parte aplicável à região, vistoriada em 26 de Abril de 1228.  Esta preciosidade diplomática foi publicada em 1934, por Rocha Madahil. Elevam-se, assim, a vinte o número de certidões passadas pelo nosso primeiro historiador, no seu ofício de «Guardador das escrepturas do tombo e chaves dela». (daqui)

Bastidores do TNSJ


É já na próxima terça-feira que vamos conhecer os bastidores do TNSJ...

Luísa Costa Gomes | Artes na Escola


No próximo dia 2 de Dezembro, Luísa Costa Gomes estará connosco a fim de dar início ao Clube de Leitura e de Escrita.

Luísa Costa Gomes | vida

Nascida em Lisboa, 1954/Licenciatura em Filosofia/Professora do Ensino Secundário/Contista, romancista, dramaturga, dramaturgista, guionista, tradutora, cronista / Publicou 5 romances, 6 volumes de contos, 2 librettos, 10 peças de teatro, entre as quais "Nunca Nada de Ninguém", "Clamor" (sobre textos do Padre António Vieira), "O Céu de Sacadura", "O Último a Rir"/ As peças foram encenadas no ACARTE (Fundação Gulbenkian), Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Nacional de S. João, Teatro Rivoli, Teatro Camões (ópera "Corvo Branco" de Philip Glass e Robert Wilson, ( EXPO 98), Teatro Villaret, etc./ Faz parte do Programa Artes na Escola, a funcionar na Direcção Geral da Inovação e Desenvolvimento Curricular, desde o ano 2000/ Traduz filmes , teatro e ficção/Dirige a revista "FICÇÕES" (revista de contos)

Luísa Costa Gomes | obra

Ficção

13 Contos de Sobressalto, contos, Editora Bertrand, Lisboa, 1982
Arnheim & Désirée, narrativa, Difel, 1983
O Gémeo Diferente, contos, Difel, 1984
O Pequeno Mundo, romance, Quetzal, 1988
Vida de Ramón, romance, Dom Quixote, 1994
Olhos Verdes, romance, Dom Quixote, 1994
O Defunto Elegante, com Abel Barros Baptista, romance, Relógio d’Água, 1996
Contos Outra Vez, contos, Cotovia, 1997
Educação para a Tristeza, romance, Presença ,1998
Império do Amor, contos, Tinta Permanente, 2001
A Pirata, romance, Dom Quixote, 2006
Setembro, contos, Dom Quixote, 2007
Ilusão (ou o que quiserem), romance, Dom Quixote, 2009

Teatro
Nunca Nada de Ninguém, Cotovia, 1991
Ubardo, seguido de A minha Austrália, Dom Quixote, 1993
Clamor, sobre textos de Vieira, Cotovia, 1994
Duas Comédias, (Um Filho e Vingança de Antero ou O Último a Rir), Relógio d’Água, 1996
O Céu de Sacadura, Cotovia, 1998
Arte da Conversação e Vanessa Vai à Luta, Cotovia, 1999
José Matias, Porto, Ensemble, 2002

Crónicas
Isto e Mais Isto e Mais Isto, Editorial Notícias, 2000

FERNÃO LOPES | apoio

Fernão Lopes

Uma flor de verde pinho | Manuel Alegre

Uma flor de verde pinho

Eu podia chamar-te pátria minha
dar-te o mais lindo nome português
podia dar-te um nome de rainha
que este amor é de Pedro por Inês.

Mas não há forma não há verso não há leito
para este fogo amor para este rio.
Como dizer um coração fora do peito?
Meu amor transbordou. E eu sem navio.

Gostar de ti é um poema que não digo
que não há taça amor para este vinho
não há guitarra nem cantar de amigo
não há flor não há flor de verde pinho.

Não há barco nem trigo não há trevo
não há palavras para dizer esta canção.
Gostar de ti é um poema que não escrevo.
Que há um rio sem leito. E eu sem coração.

Manuel Alegre

Good bye, Lenin! | Adeus, Lenine! | Wolfgang Becker

Outono de 1989. Pouco antes da queda do Muro de Berlim, a mãe de Alex tem um ataque cardíaco e entra em coma. O triunfo do capitalismo acontece enquanto ela está inconsciente. Quando finalmente acorda, no Verão de 1990, a RDA deixou de existir e Berlim está totalmente transformada. Alex, determinado a protegê-la a qualquer custo e com medo que ela volte a ter um ataque cardíaco se souber o que aconteceu, decide não lhe contar que o Muro caiu. Com a ajuda de um amigo, fabrica programas de televisão que já deixaram de existir, evita que ela veja anúncios publicitários (o que seria se ela visse um cartaz da Coca-Cola!) e enche a casa de produtos e objectos, cada vez mais raros e difíceis de conseguir.

As Vidas dos Outros | Florian Henckel von Donnersmarck

1984, Alemanha de Leste. Cinco antes antes da Glasnot e da queda do Muro, a população é mantida debaixo de controlo pela Stasi, polícia secreta alemã. A missão da Stasi é apenas uma: saber tudo sobre a vida de todas as pessoas, através de uma vasta cadeia de informadores/denunciadores. O filme acompanha a gradual desilusão do Capitão Gerd Wiesler, um oficial altamente credenciado da Stasi, cuja missão é espiar um famoso escritor, George Dreyman, e a sua esposa, a actriz Christa-Maria Sieland.

O Fim de Lizzie de Ana Teresa Pereira, por Filipa Miguel


"Uma antiga namorada disse uma vez que eu tinha o ar de quem passou algum tempo no inferno e está ainda um pouco chamuscado; mas era mais comum dizerem-me que tinha um aspecto felino.
A descrição não me desagradava.
Alto, magro, de olhos azuis, rosto de traços felinos. Suponho que as mulheres sempre me acharam bem parecido, ainda que o ar de ter passado algum tempo no inferno fosse um pouco inquietante. Mas as mulheres gostam de sentir medo.
As amigas de Lizzie diziam que ficávamos bem um com o outro. Lembro-me de uma delas ter afirmado que os nossos filhos seriam lindos. Os nossos filhos.
Não sei o que teria acontecido se Lizzie engravidasse naquela altura. Ou antes, acho que sei. Eu teria ficado doido de alegria, embora o dinheiro mal chegasse para vivermos os dois. E ela..."
in O Fim de Lizzie de
Ana Teresa Pereira

Este livro retrata a história de quatro personagens (Kevin, John e as duas irmãs gémeas, Lizzie e Miranda). Kevin é o narrador de toda a história e aqui conta as suas aventuras. Kevin foi criado na casa do seu avó, juntamente, com John, Lizzie e Miranda. Os quatro brincavam muito e divertiam-se, igualmente, na casa do avó que tomava conta deles. Mais tarde, a avó veio a falecer deixando-lhes uma herança (a casa onde cresceram) , mas essa herança só podia ser distribuída 7 anos depois da data da sua morte e, dos quatro jovens, só Kevin e Lizzie estavam vivos .
Foram eles, então, os herdeiros da casa do avó. Desde sempre, os dois sentiam, um pelo outro, um grande amor. Começaram a namorar e, a partir daí, viveram flizes, sem impedimentos, nem preocupações.

Filipa Miguel

A constipação | Gonçalo M. Tavares


A constipação

De manhã, ofereceram ao Chefe o mapa do país, todo dobradinho, a cores, para que o Chefe deixasse de confundir o Norte com o Sul, o Litoral com o Interior, urna cidade grande com urna aldeia pequena, um castelo com um centro comercial moderno, urna fonte de água com urna taberna.Enfim, ofereceram o mapa do país ao Chefe para ele deixar de confundir tudo com o seu contrário. Mas como o Chefe guardou, distraído, o mapa no bolso, à tarde estava já a assoar-se a ele.

- Raio de lenço que me ofereceram! - protestou.
- É para partir o nariz!

Os dois Auxiliares que, quando tinham testemunhas, eram muitos patriotas - e naquele caso um era testemunha do outro - estavam gelados, ao longo de toda a espinha, da cabeça aos pés: aquilo não se fazia. Nem as luvas, nem o casacão ou o cachecol impediam os calafrios. Além disso, estavam alguns graus negativos.

- Oh, Chefe. Isso não é um lenço: é o mapa do país!
- Ah! - exclamou o Chefe -, por isso é tão áspero!

O Chefe protestou, encolheu os ombros e, corno o mal já estava feito, continuou a assoar-se ao mapa.
- Assoe-se ao litoral propôs então um dos auxiliares.
- É a melhor maneira de não fazer uma ferida no nariz.

É mais mole.

O Chefe, subitamente, parou, e fixou os olhos no seu Auxiliar. Uma certa comoção na atmosfera: aquela preocupação com a sua saúde... Sem uma palavra, o Chefe inclinou-se e deu um pequeno mas significativo beijo na testa do dedicado Auxiliar.



Senhor Krauss, Gonçalo M. Tavares

Alberto Pimenta

os cegos dizem: veremos.
nós vemos e calamo-nos.

os mudos gesticulam.
nós temos as mãos nos bolsos.

os surdos põem a mão em concha.
nós tapamos os ouvidos

Alberto Pimenta
(in a A Sombra do Frio na Parede)

Teste de Avaliação

Teste Lírica Trovadoresca

A mulher na Lírica Trovadoresca



"Mas a dama é também a peça central de um divertimento, do jogo de xadrez, cuja grande voga data desta época, de outro jogo sobretudo - esse jogo que é o amor cortês. Expressão, entre outras, da ideologia cavaleiresca na sua resistência à aculturação eclesiástica, o amor cortês torna-se, no século XII, a principal actividade lúdica dos primórdios modernidade, nas cortes formadas pelos príncipes mais importantes, onde são lançadas as modas aristocráticas. Como todos os jogos, propõe-se proporcionar a evasão do quotidiano, graças à inversão das relações normais. É um desafio à exortação da Igreja contra o afundamento nos prazeres mundanos. E um desafio às proibições da moral matrimonial. Segundo as suas regras, um «jovem» - um cavaleiro celibatário - escolhe uma «dama» - esposa de um sénior - para a servir, macaqueando as atitudes vassálicas, com a esperança de uma recompensa. Mas a dama nunca é tomada pela força, nem cedida. O jogo exige que ela se dê, progressivamente, e os seus favores são tanto mais preciosos quanto eles parecem não ligar importância aos grandes castigos destinados aos adúlteros. A posição da mulher - envolvida por homenagens, desejada, lenta mas incompletamente condescendente - parece, à primeira vista, ser de superioridade. Mas é necessário não nos iludirmos com as aparências. Trata-se de um jogo de homens. Quem conduz o jogo é o próprio senhor, que finge entregar a esposa, mas que se serve dela como isco. A competição de que ela é fulcro permite-lhe segurar pela rédea o grupo de jovens que fazem a glória da sua casa. Enfim, se o desejo é de facto o aguilhão do amor cortês, a verdade é que se trata apenas do desejo masculino.
A CORTESIA, AINDA MAIS DO QUE O CASAMENTO, FAZ DA MULHER NOBRE UM OBJECTO." Georges Duby

O amor na Lírica Trovadoresca

Poesia dos Trovadores | História da Literatura Portuguesa

Máquinas, máquinas...


Que máquina criarias tu se pudesses?

Uma máquina de sonhos?
Uma máquina do tempo?
Uma máquina que fizesse as coisas boas durar mais tempo?
Uma máquina que apagasse más recordações?
Uma máquina de boas memórias?
Uma máquina para fazer de conta?
Uma máquina de boas intenções?
Uma máquina de ideias?
Uma máquina de histórias?
(Bem, isso já existe: chama-se livro?)
Ou uma máquina que dispensasse livro de instruções?

Serralves este ano vai por-nos a pensar em máquinas, neste projecto a máquina será fonte de criação e pretexto de reflexão: máquinas úteis, inúteis, poéticas, transgressoras; máquinas que despertam sonhos, que abrem caminhos, que resolvem problemas… (mais)






A propósito de Máquinas.

Máquinas

Poesia Provençal


"A actividade trovadoresca floresceu no reino de Portugal desde os inícios do séc. XIII até meados do séc. XIV. Ao contrário do que aconteceu no sul de França e mesmo na Galiza, onde abundaram os jograis, isto é, indivíduos de condição não nobre que assumiam esta manifestação cultural como uma profissão da qual retiravam os proventos necessários à sua sobrevivência, a maior parte, senão a totalidade, dos autores portugueses eram trovadores, pertencendo, portanto, aos vários estratos em que a nobreza portuguesa se dividia na altura. Entre eles encontramos um rei, D. Dinis, alguns membros da família régia, como D. Gil Sanches, bastardo de D. Sancho I, D. Afonso Sanches e o conde D. Pedro, bastardos de D. Dinis, alguns magnates, como D. Garcia Mendes d'Eixo ou de Sousa e seu filho D. Gonçalo Garcia, D. Afonso Lopes de Baião ou D. João Peres de Aboim, mas o grupo mais significativo é, sem dúvida, o dos simples cavaleiros, detentores de pequenos domínos senhoriais ou relegados à condição de simples vassalos em cortes senhoriais mais importantes. Neste grupo podemos incluir, entre outros, Afonso Mendes de Besteiros, Afonso Pais de Braga, Estevão Fernandes Barreto, Estevão Travanca, Fernão Rodrigues de Calheiros, o escudeiro João de Gaia, João de Guilhade, João Soares Coelho, João Soares Somesso, Martim Peres Alvim, Martim Soares, Pero Dornelas, Pero Mafaldo, Pero Mendes da Fonseca, Rodrig'Eanes d'Alvares, Rui Martins do Casal, Rui Queimado ou Vasco Praga de Sandim." [...]
"Constituindo-se como ficção literária através da qual era permitido ao cavaleiro ultrapassar os obstáculos postos na prática ao seu acesso à mulher e, através dela, à criação de uma nova linhagem, não admira que a cantiga de amor se tivesse imposto, junto dos cavaleiros portugueses, aos restantes géneros poéticos praticados por trovadores e jograis. Nesta perspectiva, a adopção desta manifestação cultural tinha subjacente não somente o fenómeno de pauperização dos filhos segundos e de outros cavaleiros, mas também o "resguardo" da mulher nobre por parte dos chefes de linhagens, presente, nomeadamente, no seu encaminhamento para as instituições monásticas femininas de recente fundação; e o afastamento entre o cavaleiro e a dama, implícito nas modificações acabadas de assinalar, acabou por levar o primeiro a projectar uma imagem mítica da segunda, sustentada pela reutilização e reformulação, em benefício desta, da terminologia que enquadrava as relações de carácter pessoal por eles mantidas nos meios senhoriais onde se situavam."

"Se nos voltarmos agora para as cantigas de amigo, situamo-nos aparentemente no mesmo mundo: o do foro amoroso do compositor, encenado no ambiente familiar da amiga, donde parte por vezes a oposição a esse relacionamento através da interposição da figura da mãe. Nelas, portanto, estão igualmente presentes os constrangimentos sociais já anotados em relação à cantiga de amor. As semelhanças invocadas não devem, todavia, esconder algumas divergências de fundo existentes entre ambos os géneros poéticos. A mais visível diz respeito ao novo enquadramento proposto para este relacionamento amoroso. Como é sabido, a figura do autor apaga-se dando voz à "amiga", que é quem, sozinha ou acompanhada por vezes pela mãe ou pelas amigas, se expôe, relatando-nos as atitudes e sentimentos nela provocadas por esse relacionamento. Ora, esta inversão dos papéis desempenhados até então pelo homem e pela mulher a nível literário, desinserida já do contexto vassálico vigente no serviço amoroso e na imagem da mulher da cantiga de amor, foi acompanhada, além disso, por um alargamento do quadro sentimental do poeta. Com efeito, se a cantiga de amigo ainda reproduz a coita amorosa da cantiga de amor, agora associada à figura feminina, nela cabe também a satisfação ou felicidade resultante de um amor já correspondido. Deste modo, a cantiga de amigo, e a própria cantiga de amor - pela quebra da sua importância e ao mesmo tempo pelas modificações nela operadas -, ao proporem saídas para o estado de infelicidade do compositor, anunciavam que algo se modificara no meio trovadoresco relativamente aos obstáculos de ordem familiar e social por nós destacados para justificarmos a implantação deste movimento cultural no ocidente peninsular. E resolvidos, pelo menos parcialmente, os problemas da "casa", o trovador podia dedicar uma maior atenção ao mundo que o rodeava."

"É a construção deste mundo, onde se tenta a reaproximação da dama e do cavaleiro, que podemos hoje acompanhar lendo as composições das primeiras gerações de trovadores portugueses. Na obra de alguns deles como, por exemplo, na de João Soares Somesso, constituída quase somente por cantigas de amor, ainda se podem ver com nitidez as marcas de um distanciamento compulsivo que a coita do compositor, isto é, o seu sofrimento amoroso, pela sua presença obsessiva, não resolveu por completo. Nas poucas cantigas de escárnio e de maldizer destes trovadores, uma das quais é atribuída ao mesmo João Soares, a mulher é novamente um dos temas fortes, agora num registo mais descritivo e satírico. As recusas de damas nobres em se unirem a pretendentes escolhidos pelas respectivas linhagens, a crítica à sua ligação a indivíduos de condição social inferior, vilãos ou cavaleiros-vilãos, ou ainda os raptos de duas damas da mais alta nobreza por nobres de categoria inferior, desvendam-nos parcialmente as estratégias que a têm como alvo e, ao mesmo tempo, os discursos suscitados pelo seu comportamento ou pelo comportamento dos que interferem, de alguma maneira, com o seu percurso." (António Resende de Oliveira)