Traindo o poema


Juro: eu tinha prometido não escrever
este poema. Não gosto de supermercados
nem de poetas de supermercado, mas hoje enchi
a casa de manteiga e não pude evitar uma sensação
de metáfora, uma ironia a escorregar-me nos dedos
como anúncio de contemporaneidade. Juro: eu não preciso
de tantas embalagens, nem preciso deste poema,
mas há tantos dias que não posso tomar o pequeno-almoço
na minha casa sem manteiga, sem poema, que hoje enchi-me
de coragem para tudo isto.
E juro: apesar da traição, sinto-me hoje mais
contemporânea
do que nunca.

Filipa Leal

" Filipa Leal sabe que o poema pode ser muito mais do que uma coisa banal, daí o não gostar dos poetas que só falam do quotidiano." (Bruna Freitas)

"O que lhe escorrega dos dedos é a manteiga, não a ironia: a ironia é a forma que encontra para se distanciar dos 'poetas de supermercado' ." (Gabriella)

"O sujeito lírico entende que a poesia é algo que merece muita atenção: a poesia não serve para o banal." (Jessica)

"O sujeito poético traí a poesia ao escrever sobre algo banal. A poesia serve o inefável." (Rui)

"Filipa Leal não gosta de desperdiçar palavras a falar das coisas do dia-a-dia, mas e numa crítica aos seus contemporâneos, faz um poema com manteiga, com compras, com banalidades. Para ela a manteiga é tão essencial como o poema." (Juliana)

Links


Dan Collier

Al Berto (11 de Janeiro de 1948 - 13 de Junho de 1997)



Há-de flutuar uma cidade

há-de flutuar uma cidade no crepúscolo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

Calma, diz o poema ao poeta, de Nuno Júdice

Calma, diz o poema ao poeta
que quer fazer uma greve:
as rimas circulam na gaveta,
e o verso é de quem o escreve.

Pode esgotar-se a inspiração,
ou subir na bolsa a métrica,
que as metáforas têm mão
nesta fórmula geométrica.

É redonda a linguagem
no quadrado que elas inventam;
e nasce uma nova imagem
de cada vez que as acorrentam.

Nuno Júdice

Poema em linha recta, de Fernando Pessoa

Escrever (Emily Dickinson)

De cerúleo gabão não bem coberto, Bocage

Bocage e as Ninfas (óleo de Fernando Santos - Museu de Setúbal).

De cerúleo gabão não bem coberto,
Passeia em Santarém chuchado moço,
Mantido às vezes de sucinto almoço,
De ceia casual, jantar incerto;

Dos esburgados peitos quase aberto,
Versos impinge por miúdo e grosso.
E do que em frase vil chamam caroço,
Se o quer, é vox clamantis in deserto.

Pede às moças ternura, e dão-lhe motes!
Que tendo um coração como estalage,
Vão nele acomodando a mil pexotes.

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
Cercado de um tropel de franchinotes?
É o autor do soneto: é o Bocage!

Um café com história



Lugar de intercâmbio de ideias, debates literários e propaganda de opiniões, é assim que podemos definir um dos cafés mais frequentados do séc. XVIII. Fundado no Rossio por um italiano, Nicola Breteiro, este é um dos estabelecimentos mais antigos de Lisboa.
Tendo como alcunha "Academia", devido ao largo leque de intelectuais que o frequentavam, o Nicola teve um frequentador que se destacava por entre todos outros. Esse homem era Manuel Maria Barbosa du Bocage. Um dos episódios mais engraçados da vida deste autor aconteceu precisamente à frente do Nicola: conta-se que um polícia lhe perguntou quem era, donde vinha e para onde ia, ao que o espirituoso poeta respondeu

"Eu sou Bocage
Venho do Nicola
Vou p'ro outro mundo
Se dispara a pistola".

Devido à pressão política que se fazia sentir, e aos constantes confrontos dos seus frequentadores com a polícia, o Nicola é obrigado a encerrar. No entanto em 1929, Joaquim Fonseca Albuquerque volta a recuperar o antigo café contribuindo assim para que as gerações futuras conheçam a aura do estabelecimento que foi frequentado por Bocage. (in TrekEarth)


Em defesa do ensino da Literatura

(imagem aqui)

Excerto de uma entrevista a Manuel Gusmão, na revista Textos e Pretextos, transcrita a partir do blogue de Osvaldo Manuel Silvestre.

"Julgo que a tentativa para diminuir o ensino da literatura enquanto tal, enquanto uso artístico de uma língua natural, e enquanto acesso à complexidade dos usos da linguagem, pode conduzir a desastres. Por um lado, o sucessivo adiamento para escalões superiores do encontro com a literatura fará com que muitos abandonem o sistema de ensino sem chegarem a ter contacto com a literatura e nem possam ter a opção de saber ou decidir sobre se a literatura lhes serve ou não para alguma coisa. Embora não se reduza a isso, a literatura tem a ver com a complexidade do próprio sistema linguístico a que ela acrescenta a complexidade das convenções, das regras, dos protocolos dos géneros literários e da ‘linguagem literária’, entendida enquanto um conjunto aberto de formas de comunicação e invenção verbais. Este adiamento do confronto com a complexidade frustra a descoberta e o exercício de destrezas daqueles que são ‘protegidos’ da complexidade ou da experiência da dificuldade. ‘Proteger da complexidade’ é uma fórmula altamente autoritária. Nela se casam a demagogia mais rasteira e o elitismo mais hipócrita. No fundo, isto representa a tentativa de seleccionar socialmente, de uma forma brutal, aqueles que terão acesso à possibilidade de se encontrarem com a literatura, no sistema educativo. Ligado a este problema, há o da possibilidade de preferir. O exercício da preferência implica a possibilidade de conhecer e de não apenas escolhermos aquilo que gostamos, mas de sermos também escolhidos por aqueles que se tornam os nossos textos, as nossas obras de referência. Excluir dos curricula a oportunidade da experiência da preferência estética é uma forma mais de amputação dos possíveis e de inculcar a submissão." Manuel Gusmão, in Textos e Pretextos, nº 10 (2007)

Grande Prémio de Poesia da APE atribuído a Ana Luísa Amaral


O Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (APE) foi atribuído ao livro «Entre dois rios e outras noites», de Ana Luísa Amaral.


se tudo fosse só êxtase súbito
(7 andamentos)





II
Duas linhas de amor:
a minha escrita
a falhar contra o vento
E na sala a espreitar,
fantasma súbito
real ou tanto,
como o que espreita o sono
desta sala
A minha escrita não ilude essas formas,
não as alteia em conjugações simples:
só as repete e sobra:
antes de tudo,
igual a tudo,
quantos fantasmas mais
E as poucas vezes que te permito
são vezes frágeis,
são vezes de papel

IV
Se tudo fosse só êxtase súbito,
o papel intocável e intacto,
como o meu espaço e tu entrando devagar,
as portas que te abri
abrindo para a luz
Se tudo fosse só papel de prendas,
laços e colorido,
a festa do meu espaço
– e de ti no meu espaço –
as coisas consonantes

VI
Duas linhas de amor,
a minha escrita
a falhar contra o vento
Antes de tudo, igual a tudo,
os fantasmas persistem,
sonolentos
Noite após noite,
abandonam o quarto em acalmia
e trocam de vestido
Põem de lado o branco
o sol,
e de negro enfeitados
para na noite
de novo proceder ao massacre
Até à madrugada,
quando o sono: mais forte
e esse lado do espelho
os acolhe outra vez

VII
A lua outra vez lua a adormecer
serena, duas linhas
de amor, não sou
capaz de mais: não eras tu,
mas eu que não te achava
na confusão de tanto nomear
E o teu nome ficou,
as tuas mãos, os braços verdadeiros,
condenados a folhas de resguardo:
pendentes sobre mim
duas espadas
Como duas tendências
de voar –

(ver a recensão crítiica de Rosa Maria Martelo aqui)