Joaquim Castro Caldas (1956 - 2008)


Vão-se embora palavras
Deixem-me ali à esquina
Amem e façam-se à vida
Não temam a morte voem
Sabem que são minhas

Para lá dessas fronteiras
Que desapertam as rimas
Com poemas ou bombas
Fucem apanhem boleias
Só vos deixei preparadas
Para os cornos dos poetas


Mágoa das Pedras, Joaquim Castro Caldas

Sem Sombra, Adília Lopes


(imagem daqui)

"Era uma vez uma mulher sem sombra que encontrou uma sombra de homem sem homem. Isto encheu-a de tristeza. Começou a chorar por não ter sombra própria nem homem propriamente dito, homem de carne e osso. Então as lágrimas da mulher deixaram pegadas no chão e o homem pôde encontrar a sua sombra com a sua mulher porque seguiu o rasto deixado pelas lágrimas da mulher. A mulher deixou de se preocupar com a sua sombra. Está contente. Nada lhe falta. Nem a sombra que não tem."
Adília Lopes, Irmã Barata, Irmã batata.

quatro poemas de Paulo Leminski



coração
PRA CIMA
escrito em baixo
FRÁGIL

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quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta minha adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência


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já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo
morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma

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moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia
vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia


Paulo Leminski

Nos trinta anos da morte de Ruy Belo




Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhastes súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente



Este céu passará e então
teu riso descerá dos montes pelos rios
até desaguar no nosso coração

Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu sei que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha


Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum


"Lá está o nome bíblico, já pintado a branco no asfalto e com setas antes das rotundas, Monte Abraão, subúrbio do subúrbio. Há 30 anos, jogava-se à bola nos campos por trás destes prédios. Agora por trás destes prédios há mais prédios, Queluz é subúrbio de Lisboa e Monte Abraão é subúrbio de Queluz, mas em algumas ruas ainda se respira. Esta não tem saída, o que quer dizer que não tem trânsito. Há arbustos em flor, uma palmeira soberba, plátanos. No Verão, como agora, as janelas dão para copas verdes e acesas, por alturas do quarto andar. Não é o "quarto andar sem elevador" que Ruy Belo subia "com uma pedra no peito", como diz uma das 10 cartas de que o P2 hoje revela passagens. Aí era o andar de solteiro, em Lisboa. Aqui é o andar para onde veio já casado com Maria Teresa Belo. E foi aqui, no Monte Abraão, que Rui de Moura Ribeiro Belo - nascido a 27 de Fevereiro de 1933, em S. João da Ribeira, Rio Maior - foi encontrado morto a 8 de Agosto de 1978, deitado em cima da cama. Edema pulmonar, diz a certidão de óbito. Tinha apenas 45 anos, mas parece ter vivido muitas vidas e mortes nos seus oito livros de poemas, da fundação de Roma ao aeroporto de Barajas, de Córdoba lejana y sola àquele grande rio Eufrates, de Jerusalém ao Alto da Serafina, de Lucas 21, 28 a Marilyn, de Pedro e Inês ao rapaz afogado no mar de Vila do Conde que por um triz tantas vezes não foi ele, Ruy Belo. E vem ao de cima num longo poema, Fala de um homem afogado ao largo da Senhora da Guia no dia 31 de Agosto de 1971:
"Não pense quem vier que estou sozinho
entre inúmeros peixes das
profundidades
e os corpos de incontáveis
pescadores
como o jovem lourenço
são miguel
que aqui se despediu dessa vida
de aí
a cinco salvo erro de janeiro de
sessenta e cinco".
À memória desse afogado dedicou Ruy Belo País Possível, a única antologia que fez dos seus poemas. Acreditava num país possível, que não foi Portugal. Portugal não quis saber. E a obra de Ruy Belo continua vívida, por vezes urgente. "Se a sua poesia não tivesse existido, tudo o que havia de essencial na vida espiritual do meu tempo teria ficado sem testemunhas", escreveu em 1999 António Alçada Baptista, na revista Relâmpago. É um tempo bipolar, entre Deus e deus, recolhimento e comunhão, a alegria do mundo e a sua margem. Mas os leitores que vierem depois reconhecerão sempre o seu próprio tempo, com tudo o que nele há de opressivo e sôfrego, exaltante e sem remédio, e esses leitores têm vindo, em edições lentas mas sucessivas." (in Público, 8/8/08)

O lenço preto, de Sara Monteiro


O lenço preto

A seguir, era a sua vez de apresentar um conto no encontro de micronarrativas. Na véspera lembrara-se de que se esquecera de magicar uma história e agora não tinha nada para ler. Ainda olhara para o lenço preto insistentemente mas escrevera já tantas vezes sobre ele que estava farta. Ela era rápida, havia de encontrar alguma coisa.
O tempo passou, a pessoa que lia estava a acabar. Nada lhe ocorrera, entretanto. Nada! Começou a suar frio. O escritor terminara. Bateram palmas. Olharam-na. Engoliu em seco e levantou-se. Calor e frio invadiam-na, as pernas tremiam-lhe, queria fugir. Retirou do pescoço o lenço que a incomodava com um gesto tão brusco que este lhe escapou da mão e um corvo voou no espaço por cima das cabeças dos presentes.
Voltou e poisou no seu braço. Sacudiu-o, horrorizada; uma nuvem preta subiu, subiu e espalhou-se: chuva, relâmpagos, trovões desabaram sobre a sala. As pessoas corriam e gritavam, tentando proteger-se.
Olhou os estragos provocados e o rosto estupefacto dos convidados. Agora sim, queria fugir! Salva-me! sussurrou. E a nuvem deslizou, sedosa, para a sua mão, abriu um buraco no chão, um saco preto fundo para onde ela saltou, desaparecendo sem dar explicações.


Sara Monteiro
in revista Minguante, nº11