Sou da Azinhaga, uma aldeia do concelho da Golegã, no Ribatejo. Os meus pais eram gente do campo. Nasci numa família camponesa sem terra. O meu avô Jerónimo e a minha avó Josefa tinham uma pequeníssima criação de porcos. Viviam disso, com as pocilgas ao lado da casa. O meu pai tinha feito a Guerra de 1914-18 na artilharia. No regresso decidiu sair da terra e emigrar. Foi para a PSP. Aos dois anos, o resto da família transferiu-se. Eu, a minha mãe e um irmão meu mais velho, que viria a morrer em Dezembro de 1924, poucos meses depois de estarmos em Lisboa. Se mal vivíamos, mal continuámos a viver. O ordenado do polícia era uma coisa ínfima, mas era outra vida.
A partir dos meus 5 ou 6 anos, primeiro com a família, depois sozinho, passava todo o tempo na terra. O que é importante nas minhas recordações formativas, tem muito mais que ver com o campo, do que com a cidade. A primeira coisa que fazia quando chegava à terra, nas férias grandes, era tirar os sapatos. A última coisa que fazia, quando tinha de voltar a casa, em Outubro, para regressar à escola, era calçar os sapatos. Durante esses três meses os pés tinham crescido e não entravam facilmente nos sapatos. Isto acontece até aos 15 ou 16 nos, e corresponde a um período muito vivido na aldeia.
Um dia resolveu-se levar os porcos à feira de Santarém. Da Azinhaga até lá, pelo campo, serão uns 15 ou 20 km. Saímos muito perto do fim da tarde e dormimos no caminho, na cavalariça de uma quinta, com os porcos recolhidos a uma pocilga. Não consigo, nem quero esquecer, o cheiro dos animais, os ruídos dos cavalos batendo com os cascos, o remoer da comida. Foi uma noite mágica. Tínhamos de acordar muito cedo, aí pelas cinco da madrugada, ou até um pouco antes. Quando me levanto e saio para um grande pátio, vejo a lua, a luz, o luar... Fiquei paralisado de espanto, de emoção, pela intensidade daquela luz. Apesar da minha cara de pau e da aparente frieza, sou uma pessoa que se emociona com uma facilidade incrível. Sempre fui assim. Coisas de uma simplicidade extraordinária podem emocionar-me até à lágrima. São infinitos os momentos de emoção.
O meu pai deu-me uma vez uma bofetada totalmente injusta e disse-lho muito mais tarde, mas não sofri os açoites que naquela altura eram regra. Eu, também, era uma criança fácil. Sobretudo melancólica. Quando estava na terra, muitas vezes saía de casa com um bocado de pão no bolso e uma rodela de chouriço e andava horas e horas naqueles campos, quase sempre sozinho. Sentava-me à beira do rio, não como o Ricardo Reis, mas creio que estava a preparar-se ali a pessoa em que me tornei.
O passado não cura. Deixa-se curar. No fundo trata-se de saber se aquilo que nos aconteceu é verdadeiramente importante ou não. Se as coisas não são importantes, nem vale a pena fazermos um esforço para reavivá-las, porque já se diluíram, estão mortas. Num quadro geral de meios-tons, de que o passado está cheio, tudo tem importância, mas tudo se relativiza mutuamente. Pode acontecer que algumas coisas não seja possível perdoá-las.
Se olho para trás, além da bofetada do meu pai, que não tinha nenhuma razão, e da qual não me esqueci, o que não perdoo é a história que rodeou o Evangelho Segundo Jesus Cristo, e que me fez sair de Portugal. Já passaram mais de dez anos, mas não esqueço. Também não importa nada. Eu faço a minha vida, as pessoas que cometeram esse disparate - só lhe chamo disparate nesta altura - fazem a sua própria, e acabou, mas não contem comigo. É algo de muito profundo. Detesto a hipocrisia. Não suporto aquele que, por natureza, ou por qualquer tipo de deformação moral, se transforma num hipócrita. O que se fez, seria compreensível se vivêssemos numa ditadura. É essa a regra. Agora, em democracia, dizer que um livro não pode representar o país, porque o povo português é maioritariamente católico, é algo que não admito.
Sou uma pessoa tranquila, em relação à religião. Fui baptizado, mas não tive educação religiosa. Nunca senti nenhum apelo emocional. Sou simplesmente um ateu, que nem sequer é capaz de conceber, mesmo só como construção mental, a possibilidade da existência de um Deus.
O dia mais importante da minha vida, à luz dos últimos 18 anos que vivi, foi o encontro com a minha mulher. É um mundo outro que nasce. É um mundo, que sendo o mesmo, o modo de vivê-lo mudou radicalmente com a chegada de Pilar. Se eu tivesse morrido um ano antes de a ter conhecido, teria morrido muito mais velho do que sou agora.
No plano da minha vida activa, há um tempo em que determinada decisão ganha corpo, não duvida de si mesma e de repente manifesta-se. Quando em 1975 perdi o meu emprego no «Diário de Notícias», onde era director-adjunto, encontrei-me numa situação bastante curiosa. Foi decretado o estado de sítio nos últimos dias de Novembro. Não se podia entrar, nem sair de Lisboa. O Mário Castrim e eu tínhamos um encontro marcado para Évora, onde nos reunimos depois de levantado o estado de sítio. Nessa conversa entre militantes do PCP, foi levantada esta questão: agora que se acaba o «DN», seria bom que o Partido tivesse um jornal. No dia seguinte fui ao centro de trabalho do PCP, na Avenida António Serpa, e falei com um dos responsáveis. Comuniquei-lhe que os camaradas do Alentejo tinham manifestado aquela vontade. A resposta que obtive foi a de que já estavam a pensar nisso. Achei que era óptimo e disponibilizei-me para o que fosse necessário. Então nasceu «o diário». Eu tinha dito, «se precisarem de mim, chamem-me». Precisaram de toda a gente ligada ao Partido. Muitos que estavam no «DN» e tinham perdido os seus empregos, transitaram para «o diário». Excepto eu. No fundo, talvez isso tenha razões, para quem as considera assim. Quando eu fui nomeado director-adjunto do «DN» decidi suspender a minha relação orgânica com o PCP. Porque não estava ali para receber indicações ou instruções sobre o que deveria ou não ser publicado. Na parte que me coubesse, a responsabilidade era minha. Vem o 25 de Novembro, acontece aquilo e fico à espera. Bem, no fundo não fiquei à espera que me chamassem, porque intuía, tinha-me apercebido o suficiente para ver que eu não tinha cumprido o meu dever. Não que me negasse a cumprir, mas simplesmente porque não reconhecia esse dever como tal. Portanto, com 53 anos, decido tentar finalmente saber o que é que eu poderia chegar a ser como escritor. É nessa altura que vou para o Alentejo, recolho material, começo a viver de traduções de francês. Em 1977 publico o Manual de Pintura e Caligrafia, em 78 o Objecto Quase, em 80 o Levantado do Chão, em 82 o Memorial do Convento. A partir daí começa outra vida. Essa é também uma das coisas que não perdoo. Continuo a ser militante. A única hipótese que não venha a sê-lo, não é que me separe do partido, é que o partido se separe de mim. No sentido de que o partido se converta numa tal coisa, que eu não possa reconhecer-me lá.
Houve um momento em que imaginámos que o mundo podia ser diferente. A prova de que será possível mudar o mundo está em que, desde a sua existência, o mundo não tem feito outra coisa, senão mudar. Uma das causas da frustração de muita gente é que mudou numa direcção, provavelmente previsível com um pouco mais de atenção, mas que a nossa capacidade de ilusão ou de esperança imaginou poder conduzir por outro destino. Não foi isso que aconteceu. Por isso levanto o debate da democracia.
Quando disse, com grande escândalo, que já não celebro o 25 de Abril, a questão é: porque merda tenho de celebrar o 25 de Abril? Tenho um imenso respeito pelas pessoas que o fizeram, mas um enorme desprezo pelas pessoas que o desfizeram. Hoje temos uma censura que se entranha na pele. Há uma autocensura voluntária, ou melhor, resignada. A autocensura de antes do 25 de Abril tinha uma grande diferença: não era resignada. A censura que sabíamos estar lá fora à nossa espera condicionava a expressão do pensamento, mas a nossa atitude em relação à necessidade de nos autocensurarmos não era de resignação. Não quer dizer que fôssemos melhores jornalistas do que somos agora, mas havia uma diferença imensa. Tínhamos contra quem lutar. Agora, embora se saiba contra quem deveríamos lutar, luta-se pouco.
A vida é uma lição para nós, mas talvez também tenhamos algo para ensinar à vida. Por isso, se nos questionamos sobre o que estamos a fazer aqui, acho-me tão ignorante hoje como quando, aos 7 ou 8 anos, me sentava à beira do rio, vendo a água passar.[Expresso (1683 - Página 34) - Sábado, 29 de Janeiro de 2005]
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