(Joana Vasconcelos)
O Papa à minha porta
Hoje madruguei. Tenho o Papa à minha porta.
Acelerado, saio de casa antes das oito em direcção ao Bolhão.
Nas ruas, caminheiros de passada larga dirigem-se para a Avenida dos Aliados, hoje transformada em… Assembleia. Atravesso Santa Catarina por entre polícias e gente ensonada. No shopping Via Catarina, entro no quiosque habitual. Jornal debaixo do braço, rezam-me lamentos por causa do que Papa disse do casamento gay e do aborto. “Ele tem alguma coisa que se meter nas nossas leis?”.
À porta do Bolhão, dois homens de coletes “efervescentes”, como diria Jesus (o do Benfica, claro), vendem t-shirts alusivas à visita papal. “Sobraram das paróquias”. Por cinco euros, vai-se equipado para a cerimónia. O negócio corre, desde madrugada. Se é do frio ou da fé, não sabe, mas Emília Machado, 60 anos, veio da Trofa enregelada e lá experimenta o tamanho da camisola, a ver se o agasalho de improviso fica à temperatura do seu coração católico, “mas pouco praticante”. No mercado, ainda se arrumam caixotes, poucos.
Há posters e estandartes de Bento XVI espalhados pelas barraquinhas, também a Nossa Senhora em calendário. Faltam clientes, mas já há um milagre: pela primeira vez, velhas vendedoras do mercado andaram de metro. “Só por isso, já valeu a pena vir cá o Papa”, ouve-se. Maria Argentina, 70 anos, está à coca do falatório que por ali vai. Avental e blusão vermelho coçado, acena que sim com a cabeça. “O metro foi a melhor coisa que nos aconteceu”. Vende flores desde miúda no Bolhão, não sabe ler, nem escrever. Conta dez netos. Veio dos Carvalhos, às portas do Porto. O trajecto faz-se habitualmente de autocarro, mas hoje os acessos estavam cortados. A medo, lá veio de metro. “Nem sabia o que fazer com o bilhete, mas agora vou vir mais vezes”. Pudesse ela e daria um saltito para ver o Papa. Mas nada que a entusiasme por aí além. “Convença-se: ele é um homem normal, tão pecador como os outros”. Na banca de fruta ali ao lado, há uma televisão colocada estrategicamente para não perder pitada. “Quer laranjinha, menino?”
Entro na Confeitaria do Bolhão ao mesmo tempo que uma excursão vinda de Amarante invade o espaço. Passam velhotas com cadeirinhas de praia. E jovens com ar de frete. Enquanto tomo o café, geram-se picardias. “A gente é que paga esta merda toda!”, desabafa uma senhora, com maços de jornais gratuitos debaixo do braço. Velhotas trajadas de negro da cabeça aos pés e crucifixo ao peito, murmuram indignações. Acelero o passo em direcção aos Aliados.
Reparo que, afinal, o comércio, não fechou. De todo. O que não quer dizer que não esteja em comunhão. No Armandus Noivas, não há clientes, mas uma televisão portátil vai relatando as últimas. Ana Maria, 65 anos, já foi ao Vaticano, ali há pouco para ver. Mas “a satisfação é grande”. O negócio é que leva caminhos do demo. “O casamento caiu muito. E os baptizados também”, queixa-se. Para enfrentar os tempos do avesso, pôs-se a vender carteiras e lenços. “Nem quero pensar no pior. Dava jeito um milagre”. A caminho das nove da manhã, a Avenida dos Aliados já está composta.
Houve quem passasse ali a noite, com um frio de rachar e a tremelicar, mas que não se desmancha quando se trata de ensaiar os cânticos. Há gente de cabeça de fora nos andares dos prédios em volta, lençóis de flores estendidos à varanda, mas também funcionários bancários que cumprem ordens de serviço e não fazem movimentos bruscos junto às janelas. Cá em baixo, mochilas, sacos-cama, caixas de vinho, merendas, gente de autocolante na testa, com crianças ao colo, em frágeis cadeirinhas de praia ou enrolada em xailes, no chão. Tudo espremido contra as grades. “Fazei tudo o que Ele vos disser”, leio, num pano. Conto bandeiras de várias nacionalidades. E algumas da Monarquia. “São mais bonitas”, justifica Teresa, de 18 anos, sem conseguir apontar mais vantagens mesmo quando confrontada com um País sem rei nem roque. A esta hora, debaixo da chuva que por aqui se chama de “molha-tolos”, passam por mim voluntários com camisolas do “Papa Team” e há quem garanta já ter visto festas do FC Porto mais concorridas. Desço, entretanto, ao Café Guarany, onde a Antena 1 transmite a emissão em directo, e o corropio de meias-de-leite e sumos não pára. Houve quem, mesmo vivendo na cidade, alugou quartos na pensão por cima do café, com vista para o papamóvel. Por estas alturas, vejo voluntários da Cruz Vermelha de braços cruzados, sinal de serenidade nas redondezas, sem achaques nem maleitas. Bento XVI está a chegar. Passa por mim um grupo de jovens, lenço ao pescoço, animado: “Um, dois, três, um Papa de cada vez…”.
Subo então à zona do altar improvisado.
Chegam individualidades, párocos cumprimentam-se, senhoras comentam toilettes. Paulo Rangel, o eurodeputado do PSD, anda de telemóvel na mão a tirar fotografias a tudo o que mexe. A um metro dos cálices e das hóstias, ouço dois escuteiros apontarem a chegada do ministro Teixeira dos Santos: “Não queres ir lá tu dizer-lhe das boas?”. Um segurança repara, por fim, que não posso estar ali. Os escuteiros ficam. As hóstias também, tapadas com fino plástico, não vá a ventania atirar o “corpo de Deus” ao chão.
Por volta das dez, o Papa entra na Avenida. “Para trás, para trás!”, empurram-me os escuteiros e vem-me à memória que nunca tinha recebido ordens de matulões de calções. “Hoje somos nós os maus-da-fita”, desculpa-se o escuta. Bento XVI vem subindo a avenida e acena à multidão, de dentro do papamóvel, antes do momento solene da chegada ao altar.
Dezenas de telemóveis erguem-se ao céu. A multidão agita as bandeirinhas oferecidas pelo JN e pelo Correio da Manhã. Mas os títulos do dia só acenam a crise. Portugal aperta o cinto, a missa começa, o povo reza. Ámen.
M.C. (aqui)
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