«Glosa da Nau Catrineta», Margarida Vale de Gato

 Há uns tempos, as Corujas Trovadoras brindaram-nos com uma brilhante apresentação da Nau Catrineta, que pode ser vista aqui.
Agora, a provar que a literatura é coisa viva e que os textos falam um com os outros (intertextualidade), deixamos aqui ficar uma  Glosa da Nau Catrineta, belo poema de Margarida Vale de Gato. Nesta glosa , a poetisa (ou poeta, o que mais lhe agradar)  dá voz às três meninas e cada uma delas representa as três parcas.

 «Glosa da Nau Catrineta»

Mote

Mais enxergo três meninas
debaixo de um laranjal,
uma na roca a fiar,
outra sentada a coser,
a mais fermosa de todas
está no meio a chorar.


Glosa

Somos as três irmãs mouras,
nosso pai anda no mar
e lá longe foi buscar
onde o ouro as terras doura
um anel pra nos casar.
Mas um demónio que o tenta
faz passar por genuínas
as visões que lhe apresenta:
“Vejo aplacada a tormenta,
mais enxergo três meninas.
 

Somos as três irmãs parcas
no falar e no folgar,
“Muito riso, pouco siso”,
quis nosso pai avisar
quando partiu com as barcas
nesse dia de improviso.
Seguiu dos ventos a rosa
espinhosa e fatal,
deixou-nos sós e ciosas
debaixo de um laranjal.

 
“Eu sou a irmã da roca
fio finos fios de hera,
quem meus finos fios toca
num ventre de mãe se gera
e num seio desemboca.
Fui eu quem fez o tecido
pra minha avó se encontrar
três vezes com seu marido,
duas rompi-o ao tear
uma na roca a fiar.”
 

“Eu sou a irmã que cerze
e tenho um metro que mede
o fio da alma que impede
o corpo de se perder.
Fui eu quem fez a bainha
dessa espada que levou
o meu pai para vencer
e três vezes me cortou,
duas a enfiar a linha,
outra sentada a coser.”
 

“Eu sou a irmã que carpe,
que tem nas mãos a tesoura,
e no alto dessa escarpa
nas terras que o ouro doura
sou tão bárbara quanto moura.
Fui eu quem cortou o fio
do mastro preso ao navio
do pai que me deu em bodas
ao demo a quem sugeriu
a mais fermosa de todas.”
 

Somos as irmãs que vêem
com um só olho de auguro
que as nossas agulhas têm
o passado e o futuro,
os mundos que há para além
e os mundos que há sob o mundo
onde os mortos vão penar:
e nosso pai, lá no fundo,
que quis o demo comprar
está no meio a chorar.



 Margarida Vale de Gato, in Mulher ao Mar

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