Testamento, Ana Luísa Amaral


TESTAMENTO
Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos

Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas

Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras

ANA LUÍSA AMARAL



O "Testamento" de Ana Luísa Amaral de que a poeta fala, não é um testamento material, mas uma forma de ela dizer o que quer para a sua filha, quais os seus desejos. Sabe-se que o sujeito lírico vai viajar de avião e receia a morte, por isso deixa bem claro o que quer para sua filha. Pede que alguém a eduque a filha com carinho, que não lhe ensinem só a fazer as tarefas dométicas e escolares, mas que a ensinem a ser feliz. Pede ainda que a lembrem, junto da filha, com contentamento.


Maria João