"Símbolo da riqueza e opulência do Portugal dos Descobrimentos, a jóia de bóias representa, ao mesmo tempo, o naufrágio e a decadência de uma Nação."
A torre de Belém ostenta um colar. É a mais recente instalação de Joana Vasconcelos. (por Luísa Soares de Oliveira)
"Turista que se preze não sai de Lisboa sem ter feito uma visita à Torre de Belém. O monumento manuelino acabou por se tornar num dos emblemas da cidade, sofrendo com as inúmeras reproduções sobre incontáveis suportes que enxameiam as lojas e barracas de "souvenirs" destinadas ao estrangeiro incauto.
Na verdade, a Torre é um exemplo perfeito da especificidade do gótico tardio em Portugal: feita fora de tempo, já no século XVI, ultra-decorada com os motivos típicos do Manuelino, acabou por revelar-se de uma utilidade discutível: mais do que o baluarte de defesa idealizado por D. João II e construído por D. Manuel, serviu de alfândega, paiol, farol, prisão, e hoje, totalmente esvaziada das suas funções primeiras, é uma relíquia decorativa pousada à beira-Tejo. Integra a imagem de Lisboa, como já dissemos, ao mesmo título que as ruas descuidadas de Alfama, o eléctrico 28 ou os pastéis de Belém.
Ora, o mais recente projecto de arte pública de Joana Vasconcelos construiu-se precisamente na Torre de Belém. Trata-se de um colar feito de bóias de navegação em amarelos, vermelhos, verdes e negros, as cores da bandeira nacional. Como sempre nos trabalhos desta escultora, possui um sentido de escala perfeito, distinguindo-se à distância. Concretiza uma metáfora, a da "jóia do Tejo", que tantas vezes substituiu a designação do monumento. Mais: ao convocar uma disciplina específica, a joalharia, para caracterizar um edifício em pedra, convoca a história associada ao período da sua construção, e nomeadamente a das relações coloniais e comerciais entre Portugal e o Brasil.
É certo que o Manuelino, como estilo, possui ligações à joalharia e à ourivesaria que foram já estudadas por peritos. Por outro lado, a descoberta do caminho marítimo para a Índia, primeiro, e o achamento do Brasil, depois, estiveram na origem da maior entrada de ouro, pedras preciosas e divisas de que Portugal tem memória. Joana Vasconcelos já abordou noutras obras esta relação entre o poder do dinheiro e a beleza que o uso de jóias proporciona, nomeadamente nos grandes corações feitos com garfos de plástico que reproduzem a forma das jóias de Viana. Mas o objectivo aqui é outro: trata-se de desconstruir uma imagem criada para simbolizar o poder (só a ostentação pode justificar a ornamentação excessiva e inútil de um baluarte militar) através de um processo inverso ao que preside à construção de uma metáfora: a "jóia do Tejo" torna-se real, a Torre torna-se metáfora dessa realidade, mas a jóia não o é realmente, é, sim, um encadeado de bóias de navegação sem valor de luxo.
Por isso, é evidente que este é um trabalho sobre a desconstrução dos símbolos, e mesmo sobre a falta de validade dos mitos que os precedem. Neste sentido, Joana Vasconcelos encontrou o melhor local e a melhor maneira de realizar o seu trabalho de escultora contemporânea: a interrogação das imagens do poder. Um poder que vai muito além do do longínquo século XVI."
( in ÍPSILON (Público), 16 de Maio)
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