Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhastes súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente
Este céu passará e então
teu riso descerá dos montes pelos rios
até desaguar no nosso coração
Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu sei que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha
Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum
"Lá está o nome bíblico, já pintado a branco no asfalto e com setas antes das rotundas, Monte Abraão, subúrbio do subúrbio. Há 30 anos, jogava-se à bola nos campos por trás destes prédios. Agora por trás destes prédios há mais prédios, Queluz é subúrbio de Lisboa e Monte Abraão é subúrbio de Queluz, mas em algumas ruas ainda se respira. Esta não tem saída, o que quer dizer que não tem trânsito. Há arbustos em flor, uma palmeira soberba, plátanos. No Verão, como agora, as janelas dão para copas verdes e acesas, por alturas do quarto andar. Não é o "quarto andar sem elevador" que Ruy Belo subia "com uma pedra no peito", como diz uma das 10 cartas de que o P2 hoje revela passagens. Aí era o andar de solteiro, em Lisboa. Aqui é o andar para onde veio já casado com Maria Teresa Belo. E foi aqui, no Monte Abraão, que Rui de Moura Ribeiro Belo - nascido a 27 de Fevereiro de 1933, em S. João da Ribeira, Rio Maior - foi encontrado morto a 8 de Agosto de 1978, deitado em cima da cama. Edema pulmonar, diz a certidão de óbito. Tinha apenas 45 anos, mas parece ter vivido muitas vidas e mortes nos seus oito livros de poemas, da fundação de Roma ao aeroporto de Barajas, de Córdoba lejana y sola àquele grande rio Eufrates, de Jerusalém ao Alto da Serafina, de Lucas 21, 28 a Marilyn, de Pedro e Inês ao rapaz afogado no mar de Vila do Conde que por um triz tantas vezes não foi ele, Ruy Belo. E vem ao de cima num longo poema, Fala de um homem afogado ao largo da Senhora da Guia no dia 31 de Agosto de 1971:
"Não pense quem vier que estou sozinho
entre inúmeros peixes das
profundidades
e os corpos de incontáveis
pescadores
como o jovem lourenço
são miguel
que aqui se despediu dessa vida
de aí
a cinco salvo erro de janeiro de
sessenta e cinco".
À memória desse afogado dedicou Ruy Belo País Possível, a única antologia que fez dos seus poemas. Acreditava num país possível, que não foi Portugal. Portugal não quis saber. E a obra de Ruy Belo continua vívida, por vezes urgente. "Se a sua poesia não tivesse existido, tudo o que havia de essencial na vida espiritual do meu tempo teria ficado sem testemunhas", escreveu em 1999 António Alçada Baptista, na revista Relâmpago. É um tempo bipolar, entre Deus e deus, recolhimento e comunhão, a alegria do mundo e a sua margem. Mas os leitores que vierem depois reconhecerão sempre o seu próprio tempo, com tudo o que nele há de opressivo e sôfrego, exaltante e sem remédio, e esses leitores têm vindo, em edições lentas mas sucessivas." (in Público, 8/8/08)