A inexistência de Eva | Filipa Leal



Depois de ler A inexistência de Eva, apetece-me "copiar" Adrienne Rich:

Call it a book, or not
call it a map of constant travel

[Chame-se-lhe livro, ou não
chame-se-lhe um mapa de um viajar constante.]

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Ao quarto livro, Filipa Leal dá-nos um mapa. De repente tudo ficou mais claro, como a sala branca onde estava aquela mulher:

Era uma mulher que estava dentro de uma sala muito branca

A inexistência de Eva é um corpo de mulher marcado pela memória.

Um corpo marcado pelo remorso imemorial – talvez aquele que herdamos das nossas mães e as nossas mães das mães delas – e pela castidade.
Um corpo marcado por uma culpa que ainda não é sua, mas que inevitavelmente será sua também.
Um corpo que não tem versos à volta, mas tem maçãs difusas .
Um corpo sem voz que recebe ordens de uma voz sem corpo.
Um corpo que não se pode ver a si mesmo, porque não tem espelhos (nem sequer os olhos de um qualquer Adão).
Um corpo em construção.
Um corpo de mulher que pode sair, pode ir, mas que ouve a voz que avisa:
“Assustar-te-á a existência de dia e de noite”.

Este corpo tem um nome: Eva. Como a primeira mulher. Mas esta Eva não é a primeira mulher, é apenas a primeira mulher ali. Como todas as mulheres e como todos os homens somos sempre, em alguma circunstância, os primeiros em alguma situação, corrijo, em alguma emoção..
Eva é a tinta que pela primeira vez vai escrever na brancura indefinida do papel. E, ao arriscar a escrita, pode encontrar a gaguez ou a palavra exacta ou a gralha.
Eva é a mulher limitada pelo medo de esmagar o pássaro que está fora da janela.

“Ouviu: Há um pássaro que todas as noite se deita à tua porta.
Como não sabes a que horas anoitece, nem o que é anoitecer, se abrires, esmagá-lo-ás”


Eva é matéria moldável.

Eva é a Alice no dentro do espelho, é a Sofia da Condessa de Ségur na sala dos Castigos, é Platão na sua Caverna, é cada um de nós antes de enfrentar a luz cruel da rotina.
Eva é a certeza da inexistência de saídas de emergência para a vida:

“Ouviu: - O fascínio é o perigo em que te moves.
Em breve conhecerás o abandono.”

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(2009), Leal, Filipa, A inexistência de Eva, Deriva Editores, Porto.

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