As palavras, Maria Isabel Barreno


As palavras, Maria Isabel Barreno

Houve um tempo em que as palavras eram como portas. Sua enunciação abria pequenos buracos no muro do real das coisas concretas e dos factos visíveis, que nos cercava, e dentro da palavra navegávamps num mar de sons e cores, cheiros, vagas memórias de situações passadas, conotações, dor e alegria, que por razão nenhuma se ligavam às palavras fornecendo a chave da harmonia do universo, esperanças. Com as palavras recriava-se o real: tendo a liberdade de mudar o lugar das coisas, e suas posições relativas, ignorando o espaço e o tempo, separando, nos actos o gesto e o conteúdo mais variáveis, sobrepondo, numa mesma expressão, ternura e agressividade, medo e desejo. [...] Veio depois o tempo em que as palavras caíram. Passaram a querer dizer o objecto enunciado, e nada mais além disso. Todas as aberturas do muro do real aparente, das coisas e factos, se fecharam, e o real poético passou a ser uma memória ou um sonho, ainda enunciável por palavras justas, mas nunca mais revisitável. As pessoas perderam as suas pequenas chaves do segredo da harmonia do universo.

As palavras, in Contos analógicos, Maria Isabel Barreno.

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