Ela canta, pobre ceifeira
Ela canta, pobre ceifeira
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.
Ah! canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Fernando Pessoa, Cancioneiro
Proposta de análise:
Esta composição poética pode ser dividida em duas parte lógicas. Na primeira parte, constituída pelas três primeiras estrofes, o poeta descreve a ceifeira e sobretudo o seu canto, canto instintivamente alegre. Esta descrição seria objectiva, se o poeta não introduzisse aqui a sua perspectiva: o canto da ceifeira era “alegre” porque talvez ela se julgasse feliz, mas ela era “pobre” e a sua” voz cheia de anónima viuvez”. Por isso, “ouvi-la alegra e entristece”: alegra se atendermos às razões instintiva da ceifeira, entristece se a virmos na perspectiva total do poeta. Há pois, já, nesta primeira parte um grau de subjectividade do poeta que vai adensar-se no segundo momento.
Na segunda parte, o poeta exprime a sua emoção perante a canção inconscientemente alegre da ceifeira. Podemos, ainda, subdividir esta segunda parte em dois momentos. Primeiramente, o poeta lança um apelo à ceifeira para que continue a cantar a sua canção inconsciente, porque esta emoção o obriga a pensar, e a desejar ser ela, sem deixar de ser ele, e ter a sua “alegre inconsciência e a consciência disso”. Note-se que o poeta aspira ao impossível, pois ter a consciência da inconsciência é deixar de ser inconsciente! O sujeito lírico, ciente desta impossibilidade (a ciência pesa tanto!), lança uma apóstrofe ao céu, ao campo, à canção, personificados, pedindo-lhes que entrem dentro dele, o transformem na sombra deles e o levem para sempre. Paira aqui aquela dor de pensar tão habitual nos poemas de Fernando Pessoa. Mais um paradoxo do grande poeta , o qual tendo sido o que mais se serviu da inteligência, se sentiu um ser torturado, por ser um ser pensante, daí a sua aspiração pela alegre inspiração da ceifeira.
A nível morfo-sintáctico, nas três primeiras estrofes, o tempo verbal predominante é o presente,que projecta a voz doce da ceifeira, deslizando suavemente na imaginação do poeta que nela medita. A própria repetição das formas do presente (canta - três vezes; ondula) sugere a imagem da ceifeira a cantar a deslizar na imaginação do poeta. A mesma sugestão da passagem lenta do tempo, acomodada à meditação do poeta, é dada pelo recurso à perifrástica e pelo gerúndio. Na segunda parte do poema, predomina o imperativo para traduzir o apelo do poeta, em nítida função apelativa da linguagem.
Note-se a expressividade do gerúndio, na frase apelativa: "Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando" (o poeta queria a voz da ceifeira ondeando perpetuamente na sua imaginação).
Na primeira parte do poema por ser essencialmente descritiva, há mais adjectivos que na segunda, em que predominam os substantivos, pronomes e verbos, de harmonia com a função apelativa da linguagem que aí é predominante. A repetição do verbo "cantar " (sete vezes), do substantivo voz e canção, o uso do verbo ouvir, põem a sensação auditiva no âmago emocional do poeta.
O vocabulário do poema é todo ele simples, não ultrapassando em si os limites da norma. Mas o poeta soube carregar de sentidos subtilmente sugestivos as palavras mais simples. Assim, observemos a expressividade dos adjectivos: “pobre ceifeira”,”feliz talvez”, ”voz cheia de alegre e anónima viuvez”. Notemos os dois pares antitéticos: “pobre”/”feliz”; “alegre”/”anónima”. Estas relações justificam-se porque cada um dos pares tem de um lado a visão parcial da ceifeira, e por outro a visão total do poeta: a ceifeira era feliz e alegre como uma ave pode ser feliz e alegre, inconsciente do seu mal; o poeta via a sua pobreza, duvidava da sua felicidade (“feliz talvez”) e sentia na sua voz uma “alegre e anónima viuvez”. Note-se que o signo “viuvez” é vulgarmente tomado como símbolo de desamparo e tristeza. É evidente a amarga ironia que a expressão antitética "alegre e anónima viuvez" e o advérbio talvez posposto a feliz, projectam sobre a ceifeira e o seu canto, na primeira quadra. Os dois adjectivos da segunda quadra (ar limpo e enredo suave) não se podem desligar um do outro: o ar é limpo para que nele perpasse a voz suave de ceifeira; a voz cristalina da ceifeira volteia o céu igualmente cristalino. Atente-se na expressividade plurissignificativa do adjectivo incerta , na expressão " incerta voz".
O adjectivo está carregado de subjectividade do poeta, pois para ele a voz era ao mesmo tempo alegre e triste. O adjectivo alegre ("a tua alegre inconsciência"), apontando para a parcialidade do conhecimento que a ceifeira tinha da sua vida, está carregado de amarga ironia: o poeta desejava a inconsciência da ceifeira por ser (para ela) a única causa da sua alegria.
Note-se, finalmente, a subtil expressividade do adjectivo leve (“a vossa sombra leve”, sugerindo leveza, a quase imaterialidade desta visão-sonho que o poeta teve da pobre ceifeira). Para exprimir a imaterialidade, a subjectividade dessa visão poética., há ainda comparações e metáforas. A comparação: "a sua voz...ondula como um canto de ave" aponta não apenas para a suavidade da voz, mas também para o muito de instintivo, de inconsciente que tem a alegria da sua voz. "No ar limpo como um limiar" acentua a pureza do ar, do céu em que o poeta imagina a voz da ceifeira volteando: a pureza da voz da ceifeira projecta-se no ambiente em que ela se propaga
Notemos, agora, a expressividade das metáforas: "...a sua voz ondula" (como se ela enchesse o ar e este fosse o mar); "Na sua voz há o campo e a lida" (como se o perfume do campo e a grácil agitação do seu trabalho enchessem a sua); " E há curvas no enredo suave do som" (a sugerir a melodiosa harmonia da sua canção. "Derrama no meu coração"(como se a sua voz fosse um liquido delicioso de que o poeta queria ser alagado); "a ciência pesa tanto" (conotando com a dor de pensar).
Para exprimir a contradição entre a alegria da ceifeira e o seu trabalho duro, e as consequentes sensações opostas que ela operava nele, o poeta emprega várias antíteses: “pobre”/”feliz”; “alegre”/”anónima”; “Alegre/entristece” , e os paradoxos "Ah! Poder ser tu ,sendo eu!"; "Ter a tua alegre inconsciência e a consciência disso".
Repare-se quanta emoção e expressividade há nas personificações "voz cheia de alegre e anónima viuvez", "Ó céu, ó campo, ó canção!"; o poeta serviu -se , também do pleonasmo "entrai por mim dentro". Note-se a beleza da última estrofe: depois da referência ao peso da ciência e à brevidade da vida, o poeta sugere muito subtilmente, o desejo de se evolar na sombra leve da ceifeira, que também desaparece.
A nível fónico, o poeta usou a quadra , desta vez de harmonia com o assunto simples, embora intelectualizado, notando-se várias vezes o transporte entre pares de versos e entre estrofes à maneira da atafinda trovadoresca.
A rima é sempre cruzada, segundo o esquema rimático ABAB, rima sempre consoante, com excepção dos versos lº e 3º da primeira estrofe, em que se verifica rima toante. Note-se o som aberto da rima na última estrofe, sugerindo talvez a limpidez e a claridade do céu a que o o poeta aspirava. a comprovar a variedade sonora do poema, de harmonia com o canto do ceifeira, há ainda os frequentes casos de aliteração.
2 comentários:
Gostei muito. Um dos mais completos que encontrei.
Obrigada pela ajuda (:
Foi uma boa ajuda, obrigada
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