O laboratório poético | José Gil



" Ele tinha o seu laboratório de linguagem. Estava consciente disso, e espantava-se e maravilhava-se como se tudo se passasse fora dele. «No lado de fora de dentro», como ele próprio diria. Porque era realmente dentro dele que se produzia a obra, que se aceleravam os mecanismos que acompanham a produção de palavras, de metáforas, de versos, de poemas, de odes inteiras. Observava-se, examinava atentamente o trabalho rigoroso do poeta, as transformações sofridas por essa matéria-prima (as sensações) de que emergia a linguagem. Matéria-prima ou transformada, porque se tratava também dos efeitos das palavras sobre a receptividade dos sentidos; não importa: por uma dessas reviravoltas em cascata em que ele era mestre, e graças às quais o segundo se torna primeiro, o direito, avesso, ou o dentro, fora, o seu próprio laboratório poético transformou-se em matéria de linguagem; produtor de sensações aptas a converter-se em poema.
Talvez nunca a reflexão sobre o processo criador se tenha tanto e tão maciçamente integrado na obra de um autor. [...]
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Não que ele escreva sobre a impossibilidade de escrever ou que se interrogue sobre o não-sentido da escrita (a literatura era a única «verdade» de que nunca duvidou…); pelo contrário escreve sobre a possibilidade infinita de escrever, sobre a incessante proliferação das palavras e das sensações: assiste à formação do poema perscrutando as próprias sensações, espreitando o seu jorrar, apanhando-as à passagem , vendo-as engasgarem-se em palavras enquanto estas suscitam novas sensações de uma outra realidade. (…)
Mas Fernando Pessoa não se limitou a «assistir», como ele próprio diz, ao desenrolar dos mecanismos que presidiam ao nascimento da linguagem poética, provocou-os, criou as condições experimentais, laboratoriais, que os tornavam possíveis: experimentou, com o maior rigor, a sua estética."

[José Gil, Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Relógio d’Água, 1996, pág. 9- 10]

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