SR. MILHÕES

Faça favor de estar quieto. Eu admiro-o. Quando se representou aquela sua peça – O Destino – disse logo comigo: que talento!

GOVERNADOR CIVIL

(desvanecido) Muito obrigado. O que vale neste mundo são as almas irmãs.

SR. MILHÕES

Só ele é capaz de me compreender, só ele é digno de morrer comigo.

GOVERNADOR CIVIL

Mau! Mau! Mau!

SR. MILHÕES

Na sua peça há cenas verdadeiramente shakespearianas – são as que não estão lá. Porque é necessário que o senhor saiba: os livros, as peças, a arte, enfim, só vale pelo que sugere. O que lá está em regra não presta para nada; o que cada um de nós constrói sobre a linha, a cor, e o som, é que é verdadeiramente superior. Por isso lhe perdoei todas as banalidades que tem escrito, e passei a admirá-lo. Pulverizando-o comigo e com o globo, realizo o pensamento dos mais altos filósofos. (O outro julgando-o entretido vai para fugir.) Fugir para onde? Não seja estúpido. Melhor é entrar comigo sem desvarios na categoria dos deuses. Elevo-o à categoria dos deuses.

GOVERNADOR CIVIL

Ó meu Deus! Ó senhor!. . .

SR. MILHÕES

Trr, trr, e sou adorado, sou magnífico, sou único. (Faz menção de tocar.)

GOVERNADOR CIVIL

Perdão! Perdão! Perdão! Ao menos outra morte! Estoirado não! Dê-me outra morte, uma morte onde o meu cadáver se possa sepultar com decência e em que haja possibilidade de me fazerem um enterro digno dum Governador Civil.

SR. MILHÕES

Ser pulverizado, pertencer ao cosmos, viajar nas nuvens, que melhor quer o senhor? Que mais quer o senhor?


[...]

SR. MILHÕES

Estou farto! Estou farto de me vestir todos os dias, de cumprimentar todos os dias, de dizer todos os dias que sim! Estou farto de sorrir e de fazer as mesmas coisas inúteis, que não condizem com a minha situação respeitável no universo. Eu não quero ser bicho; com a fortuna de que disponho e este talento que Deus me deu, não posso ser bicho – e tenho que confessar a mim que sou bicho. Eu e o macaco do Jardim Zoológico! Oh não! Oh não!

GOVERNADOR CIVIL

Eu endoideço! Eu endoideço!

SR. MILHÕES

Vou suprimir a vida, porque a vida mete-me medo, ouviste? Porque me mete medo. Fui sempre ridículo, mas nem sempre me senti ridículo. A vida foi sempre atroz, mas nem sempre a senti atroz. Quando dei pelo que ela tem de reles e de grotesco, de trágico e de grotesco, veio-me um vómito de tristeza. Vi-te e vi-me. Vi que a minha caridade era grotesca, que os meus deveres eram grotescos, com os dividendos a receber, os coupons a cortar, um cofre do tamanho desta sala e um guarda-portão eminente a distribuir seis vinténs à pobreza. Considerei-me abjecto. Abjectos e grotescos os laços de família, à espera do testamento e da cólica, e os mil e quinhentos que eu dava por mês à obra dos órfãos mutilados. Pior, pior. . . Olhei para mim, olhei para dentro de mim mesmo e ao mesmo tempo encarei com a Vida. Com esta coisa prodigiosa que é a Vida, feita para a desgraça, para a dor, para o sonho – e que dura um minuto, um só minuto --, e encontrei-me sórdido com as minhas inscrições a receber e as minhas décimas a pagar. Oh, um instante para deter isto, caótico e doirado, sôfrego e doirado! Um instante para sofrer, para lavrar a terra, para ser, enfim, o homem! E eu já não podia arrancar-me ao meu palácio com um guarda-portão fardado de ministro, nem fazer outra coisa senão abrir a boca com sono diante do cofre das inscrições de assentamento. De assentamento, repara bem. No mundo caótico onde se grita e se sonha, há inscrições de assentamento! Tu compreendes isto? Tu explicas isto?. . . Vi então o infinito lá em cima e vi-me a mim cá em baixo. Mais um passo e senti que acabava a vida a fazer paciências.

(O doido e a Morte, Raul Brandão)

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