"Tenho uma dor chamada Portugal" é um verso de Ruy Belo, o mesmo poeta de quem se ouvem, perto do final deste espectáculo, as palavras "Aqui - mulher terra mar / Aqui só pode ser a casa de deus". Belo é um dos "vencidos do catolicismo", como disse noutro poema (que termina com as palavras de Cristo, por sua vez repetindo um salmo de David: "Meu deus meu deus porque me abandonaste?"). As citações e referências cruzadas dariam para várias edições do PÚBLICO, tal é a riqueza da obra vicentina e da mitologia judaico-cristã. E deve haver inúmeras maneiras de falar deste espectáculo. Mas a ideia mais importante parece ser essa: deus e Portugal são duas fontes de mágoa. Será?
Breve Sumário da História de Deus | crítica do Público
"Tenho uma dor chamada Portugal" é um verso de Ruy Belo, o mesmo poeta de quem se ouvem, perto do final deste espectáculo, as palavras "Aqui - mulher terra mar / Aqui só pode ser a casa de deus". Belo é um dos "vencidos do catolicismo", como disse noutro poema (que termina com as palavras de Cristo, por sua vez repetindo um salmo de David: "Meu deus meu deus porque me abandonaste?"). As citações e referências cruzadas dariam para várias edições do PÚBLICO, tal é a riqueza da obra vicentina e da mitologia judaico-cristã. E deve haver inúmeras maneiras de falar deste espectáculo. Mas a ideia mais importante parece ser essa: deus e Portugal são duas fontes de mágoa. Será?
Palavras de Jacob depois do sonho | Ruy Belo
Amei a mulher amei a terra amei o mar
amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar
De muitas delas de resto falei
Não sei talvez eu me possa enganar
foram tantas as vezes que me enganei
mas por trás da mulher da terra e do mar
É esse o seu nome e nele não cabe temor
Mas depois deste sonho sou obrigado a cantar:
Eis que o senhor está neste lugar
Porquê não sei talvez uma haste balance
talvez sorria alguma criança
Terrível não é o homem sozinho na tarde
como noutro tempo de esplendor cantei
Terrível é este lugar
Terrível porquê?
Não sei bem
Talvez porque o senhor pisa esta terra com os seus pés
(lembro-me até de que mandou tirar as sandálias a moisés)
Levanto os dois braços aos céus
Aqui - mulher terra mar -
Aqui só pode ser a casa de deus
.
Ruy Belo
Salmo 139 mudado por Herberto Helder
Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Sabes quando me sento e me levanto,
de longe escrutas as menores intenções,
reconheces a minha marcha e vigias o meu sono.
Nada de mim te é estranho.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Estás em frente do meu rosto, estás atrás das minhas co
e pousaste a tua mão sobre a carne do meu ombro.
– Oh, tua ciência é a mais prodigiosa.
Como fugir à tua Face, como evitar teu Espírito?
Acho -te nos campos celestes e nas funduras da treva.
Se voo nas asas da luz para o outro lado das águas,
agarra -me a tua mão que jamais me deixará.
E se as trevas sem astros se derrubam sobre mim,
para teus olhos as noites nada mais são do que luz.
Foste tu, eu sei, quem ergueu a minha carne,
quem lentamente me urdiu no ventre de minha mãe.
Maravilho -me ao pensar no enigma criado.
De há muito já decifravas labirintos da minha alma,
e vias erguer -se a máquina dos meus ossos obscuros.
Minha vida estava inscrita no teu livro encoberto.
Ainda antes do tempo fxaras os meus dias.
Mas os teus, os teus enigmas, quem os pode decifrar?
Que se estendem pelo tempo como na terra as areias.
Odeio os teus inimigos com um ódio absoluto.
Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Tu que sabes do meu sono e da minha marcha incerta,
dá -me o caminho secreto para a tua eternidade.
mudado por Herberto Helder
Salmo 139
In Poesia Toda. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 169 -170.
Reconciliação | Else Lasker‑Schüler
Há‑de uma grande estrela cair no meu colo…
A noite será de vigília,
E rezaremos em línguas
Entalhadas como harpas.
Será noite de reconciliação –
Há tanto Deus a derramar‑se em nós.
Crianças são os nossos corações,
Anseiam pela paz, doces-cansados.
E nossos lábios desejam beijar‑se –
Porque hesitas?
Não faz meu coração fronteira com o teu?
O teu sangue não pára de dar cor às minhas faces.
Será noite de reconciliação,
Se nos dermos, a morte não virá.
Há‑de uma grande estrela cair no meu colo.
Else Lasker‑Schüler
In Baladas Hebraicas. Trad. João Barrento.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. p. 45.
Breve Sumário da História de Deus | Gil Vicente
Breve Sumário da História de Deus | Ensaios 04 from Teatro Nacional São João on Vimeo.
"As personagens não saem de cena. Podemos vê-las, podemos não vê-las, mas estão sempre lá, como que presas naquele espaço. Há camas encavalitadas de um lado, camas encavalitadas do outro, de madeira áspera, a remeter para os campos de concentração de Auschwitz-Birkenau."
"Os espectadores entram na sala do Teatro Nacional de São João e os actores já estão no palco. Há uma cortina de tule (quarta parede). Através dela, pode ver-se como se movem ou se deixam estar. É como se redistribuíssem papéis de uma peça já tantas vezes feita. "
"Um anjo criado à imagem da estátua Anjo de Portugal (Joana Carvalho), que Carinhas viu no Museu de Arte Antiga e que pertence ao Convento de Cristo, apresenta o auto. Lúcifer (António Durães), o anjo caído, tem voz de trovão. Satanás (Paulo Freixinho) silva como o Gollum do "Senhor dos Anéis", trilogia cinematográfica de Peter Jackson, a partir de J.R.R. Tolkien. É ele que faz pecar Eva (Lígia Roque), que logo arrasta Adão (João Cardoso), e com ele toda a humanidade até Jesus Cristo (Daniel Pinto) a vir redimir.
Pelo palco, desfila Abel (Pedro Frias), o justo pastor assassinado pelo irmão, Caim. E o inquebrável Job, atingido por sucessivas perdas. E Abraão (Jorge Mota), Moisés (Alberto Magassela), DavidIsaías (Mário Santos), a representar a Lei da Escritura. E, depois deles, João Baptista (João Pedro Vaz), Jesus Cristo. E, entre eles, o Mundo (Pedro Almendra), o Tempo (João Castro), a Morte (Alexandra Gabriel). A Morte, neste espectáculo, é pálida, frágil, andrógina. E Jesus Cristo transborda cor, calor, humanidades" (daqui)
PARA SABERES MAIS SOBRE O ESPECTÁCULO
Casamento de D. João I e D. Filipa de Lencastre | Fernão Lopes
O órfão | Kleist
A ler até 2 de Dezembro :
O órfão de Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist,
disponível aqui.
FERNÃO LOPES
Luísa Costa Gomes | Artes na Escola
No próximo dia 2 de Dezembro, Luísa Costa Gomes estará connosco a fim de dar início ao Clube de Leitura e de Escrita.
Luísa Costa Gomes | vida
Nascida em Lisboa, 1954/Licenciatura em Filosofia/Professora do Ensino Secundário/Contista, romancista, dramaturga, dramaturgista, guionista, tradutora, cronista / Publicou 5 romances, 6 volumes de contos, 2 librettos, 10 peças de teatro, entre as quais "Nunca Nada de Ninguém", "Clamor" (sobre textos do Padre António Vieira), "O Céu de Sacadura", "O Último a Rir"/ As peças foram encenadas no ACARTE (Fundação Gulbenkian), Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Nacional de S. João, Teatro Rivoli, Teatro Camões (ópera "Corvo Branco" de Philip Glass e Robert Wilson, ( EXPO 98), Teatro Villaret, etc./ Faz parte do Programa Artes na Escola, a funcionar na Direcção Geral da Inovação e Desenvolvimento Curricular, desde o ano 2000/ Traduz filmes , teatro e ficção/Dirige a revista "FICÇÕES" (revista de contos)
Luísa Costa Gomes | obra
Ficção
13 Contos de Sobressalto, contos, Editora Bertrand, Lisboa, 1982
Arnheim & Désirée, narrativa, Difel, 1983
O Gémeo Diferente, contos, Difel, 1984
O Pequeno Mundo, romance, Quetzal, 1988
Vida de Ramón, romance, Dom Quixote, 1994
Olhos Verdes, romance, Dom Quixote, 1994
O Defunto Elegante, com Abel Barros Baptista, romance, Relógio d’Água, 1996
Contos Outra Vez, contos, Cotovia, 1997
Educação para a Tristeza, romance, Presença ,1998
Império do Amor, contos, Tinta Permanente, 2001
A Pirata, romance, Dom Quixote, 2006
Setembro, contos, Dom Quixote, 2007
Ilusão (ou o que quiserem), romance, Dom Quixote, 2009
Teatro
Nunca Nada de Ninguém, Cotovia, 1991
Ubardo, seguido de A minha Austrália, Dom Quixote, 1993
Clamor, sobre textos de Vieira, Cotovia, 1994
Duas Comédias, (Um Filho e Vingança de Antero ou O Último a Rir), Relógio d’Água, 1996
O Céu de Sacadura, Cotovia, 1998
Arte da Conversação e Vanessa Vai à Luta, Cotovia, 1999
José Matias, Porto, Ensemble, 2002
Crónicas
Isto e Mais Isto e Mais Isto, Editorial Notícias, 2000
Uma flor de verde pinho | Manuel Alegre
Eu podia chamar-te pátria minha
dar-te o mais lindo nome português
podia dar-te um nome de rainha
que este amor é de Pedro por Inês.
Mas não há forma não há verso não há leito
para este fogo amor para este rio.
Como dizer um coração fora do peito?
Meu amor transbordou. E eu sem navio.
Gostar de ti é um poema que não digo
que não há taça amor para este vinho
não há guitarra nem cantar de amigo
não há flor não há flor de verde pinho.
Não há barco nem trigo não há trevo
não há palavras para dizer esta canção.
Gostar de ti é um poema que não escrevo.
Que há um rio sem leito. E eu sem coração.
Manuel Alegre
Good bye, Lenin! | Adeus, Lenine! | Wolfgang Becker
As Vidas dos Outros | Florian Henckel von Donnersmarck
O Fim de Lizzie de Ana Teresa Pereira, por Filipa Miguel
A descrição não me desagradava.
Alto, magro, de olhos azuis, rosto de traços felinos. Suponho que as mulheres sempre me acharam bem parecido, ainda que o ar de ter passado algum tempo no inferno fosse um pouco inquietante. Mas as mulheres gostam de sentir medo.
As amigas de Lizzie diziam que ficávamos bem um com o outro. Lembro-me de uma delas ter afirmado que os nossos filhos seriam lindos. Os nossos filhos.
Não sei o que teria acontecido se Lizzie engravidasse naquela altura. Ou antes, acho que sei. Eu teria ficado doido de alegria, embora o dinheiro mal chegasse para vivermos os dois. E ela..."
in O Fim de Lizzie de Ana Teresa Pereira
Este livro retrata a história de quatro personagens (Kevin, John e as duas irmãs gémeas, Lizzie e Miranda). Kevin é o narrador de toda a história e aqui conta as suas aventuras. Kevin foi criado na casa do seu avó, juntamente, com John, Lizzie e Miranda. Os quatro brincavam muito e divertiam-se, igualmente, na casa do avó que tomava conta deles. Mais tarde, a avó veio a falecer deixando-lhes uma herança (a casa onde cresceram) , mas essa herança só podia ser distribuída 7 anos depois da data da sua morte e, dos quatro jovens, só Kevin e Lizzie estavam vivos .
Foram eles, então, os herdeiros da casa do avó. Desde sempre, os dois sentiam, um pelo outro, um grande amor. Começaram a namorar e, a partir daí, viveram flizes, sem impedimentos, nem preocupações.
Filipa Miguel
A constipação | Gonçalo M. Tavares
A constipação
De manhã, ofereceram ao Chefe o mapa do país, todo dobradinho, a cores, para que o Chefe deixasse de confundir o Norte com o Sul, o Litoral com o Interior, urna cidade grande com urna aldeia pequena, um castelo com um centro comercial moderno, urna fonte de água com urna taberna.Enfim, ofereceram o mapa do país ao Chefe para ele deixar de confundir tudo com o seu contrário. Mas como o Chefe guardou, distraído, o mapa no bolso, à tarde estava já a assoar-se a ele.
- Raio de lenço que me ofereceram! - protestou.
- É para partir o nariz!
Os dois Auxiliares que, quando tinham testemunhas, eram muitos patriotas - e naquele caso um era testemunha do outro - estavam gelados, ao longo de toda a espinha, da cabeça aos pés: aquilo não se fazia. Nem as luvas, nem o casacão ou o cachecol impediam os calafrios. Além disso, estavam alguns graus negativos.
- Oh, Chefe. Isso não é um lenço: é o mapa do país!
- Ah! - exclamou o Chefe -, por isso é tão áspero!
O Chefe protestou, encolheu os ombros e, corno o mal já estava feito, continuou a assoar-se ao mapa.
- Assoe-se ao litoral propôs então um dos auxiliares.
- É a melhor maneira de não fazer uma ferida no nariz.
É mais mole.
O Chefe, subitamente, parou, e fixou os olhos no seu Auxiliar. Uma certa comoção na atmosfera: aquela preocupação com a sua saúde... Sem uma palavra, o Chefe inclinou-se e deu um pequeno mas significativo beijo na testa do dedicado Auxiliar.
Alberto Pimenta
nós vemos e calamo-nos.
os mudos gesticulam.
nós temos as mãos nos bolsos.
os surdos põem a mão em concha.
nós tapamos os ouvidos
Alberto Pimenta
(in a A Sombra do Frio na Parede)
A mulher na Lírica Trovadoresca
"Mas a dama é também a peça central de um divertimento, do jogo de xadrez, cuja grande voga data desta época, de outro jogo sobretudo - esse jogo que é o amor cortês. Expressão, entre outras, da ideologia cavaleiresca na sua resistência à aculturação eclesiástica, o amor cortês torna-se, no século XII, a principal actividade lúdica dos primórdios modernidade, nas cortes formadas pelos príncipes mais importantes, onde são lançadas as modas aristocráticas. Como todos os jogos, propõe-se proporcionar a evasão do quotidiano, graças à inversão das relações normais. É um desafio à exortação da Igreja contra o afundamento nos prazeres mundanos. E um desafio às proibições da moral matrimonial. Segundo as suas regras, um «jovem» - um cavaleiro celibatário - escolhe uma «dama» - esposa de um sénior - para a servir, macaqueando as atitudes vassálicas, com a esperança de uma recompensa. Mas a dama nunca é tomada pela força, nem cedida. O jogo exige que ela se dê, progressivamente, e os seus favores são tanto mais preciosos quanto eles parecem não ligar importância aos grandes castigos destinados aos adúlteros. A posição da mulher - envolvida por homenagens, desejada, lenta mas incompletamente condescendente - parece, à primeira vista, ser de superioridade. Mas é necessário não nos iludirmos com as aparências. Trata-se de um jogo de homens. Quem conduz o jogo é o próprio senhor, que finge entregar a esposa, mas que se serve dela como isco. A competição de que ela é fulcro permite-lhe segurar pela rédea o grupo de jovens que fazem a glória da sua casa. Enfim, se o desejo é de facto o aguilhão do amor cortês, a verdade é que se trata apenas do desejo masculino. A CORTESIA, AINDA MAIS DO QUE O CASAMENTO, FAZ DA MULHER NOBRE UM OBJECTO." Georges Duby
O amor na Lírica Trovadoresca
Máquinas, máquinas...
Uma máquina de sonhos?
Uma máquina do tempo?
Uma máquina que fizesse as coisas boas durar mais tempo?
Uma máquina que apagasse más recordações?
Uma máquina de boas memórias?
Uma máquina para fazer de conta?
Uma máquina de boas intenções?
Uma máquina de ideias?
Uma máquina de histórias?
(Bem, isso já existe: chama-se livro?)
Ou uma máquina que dispensasse livro de instruções?
Serralves este ano vai por-nos a pensar em máquinas, neste projecto a máquina será fonte de criação e pretexto de reflexão: máquinas úteis, inúteis, poéticas, transgressoras; máquinas que despertam sonhos, que abrem caminhos, que resolvem problemas… (mais)
Poesia Provençal
"Constituindo-se como ficção literária através da qual era permitido ao cavaleiro ultrapassar os obstáculos postos na prática ao seu acesso à mulher e, através dela, à criação de uma nova linhagem, não admira que a cantiga de amor se tivesse imposto, junto dos cavaleiros portugueses, aos restantes géneros poéticos praticados por trovadores e jograis. Nesta perspectiva, a adopção desta manifestação cultural tinha subjacente não somente o fenómeno de pauperização dos filhos segundos e de outros cavaleiros, mas também o "resguardo" da mulher nobre por parte dos chefes de linhagens, presente, nomeadamente, no seu encaminhamento para as instituições monásticas femininas de recente fundação; e o afastamento entre o cavaleiro e a dama, implícito nas modificações acabadas de assinalar, acabou por levar o primeiro a projectar uma imagem mítica da segunda, sustentada pela reutilização e reformulação, em benefício desta, da terminologia que enquadrava as relações de carácter pessoal por eles mantidas nos meios senhoriais onde se situavam."
"Se nos voltarmos agora para as cantigas de amigo, situamo-nos aparentemente no mesmo mundo: o do foro amoroso do compositor, encenado no ambiente familiar da amiga, donde parte por vezes a oposição a esse relacionamento através da interposição da figura da mãe. Nelas, portanto, estão igualmente presentes os constrangimentos sociais já anotados em relação à cantiga de amor. As semelhanças invocadas não devem, todavia, esconder algumas divergências de fundo existentes entre ambos os géneros poéticos. A mais visível diz respeito ao novo enquadramento proposto para este relacionamento amoroso. Como é sabido, a figura do autor apaga-se dando voz à "amiga", que é quem, sozinha ou acompanhada por vezes pela mãe ou pelas amigas, se expôe, relatando-nos as atitudes e sentimentos nela provocadas por esse relacionamento. Ora, esta inversão dos papéis desempenhados até então pelo homem e pela mulher a nível literário, desinserida já do contexto vassálico vigente no serviço amoroso e na imagem da mulher da cantiga de amor, foi acompanhada, além disso, por um alargamento do quadro sentimental do poeta. Com efeito, se a cantiga de amigo ainda reproduz a coita amorosa da cantiga de amor, agora associada à figura feminina, nela cabe também a satisfação ou felicidade resultante de um amor já correspondido. Deste modo, a cantiga de amigo, e a própria cantiga de amor - pela quebra da sua importância e ao mesmo tempo pelas modificações nela operadas -, ao proporem saídas para o estado de infelicidade do compositor, anunciavam que algo se modificara no meio trovadoresco relativamente aos obstáculos de ordem familiar e social por nós destacados para justificarmos a implantação deste movimento cultural no ocidente peninsular. E resolvidos, pelo menos parcialmente, os problemas da "casa", o trovador podia dedicar uma maior atenção ao mundo que o rodeava."
"É a construção deste mundo, onde se tenta a reaproximação da dama e do cavaleiro, que podemos hoje acompanhar lendo as composições das primeiras gerações de trovadores portugueses. Na obra de alguns deles como, por exemplo, na de João Soares Somesso, constituída quase somente por cantigas de amor, ainda se podem ver com nitidez as marcas de um distanciamento compulsivo que a coita do compositor, isto é, o seu sofrimento amoroso, pela sua presença obsessiva, não resolveu por completo. Nas poucas cantigas de escárnio e de maldizer destes trovadores, uma das quais é atribuída ao mesmo João Soares, a mulher é novamente um dos temas fortes, agora num registo mais descritivo e satírico. As recusas de damas nobres em se unirem a pretendentes escolhidos pelas respectivas linhagens, a crítica à sua ligação a indivíduos de condição social inferior, vilãos ou cavaleiros-vilãos, ou ainda os raptos de duas damas da mais alta nobreza por nobres de categoria inferior, desvendam-nos parcialmente as estratégias que a têm como alvo e, ao mesmo tempo, os discursos suscitados pelo seu comportamento ou pelo comportamento dos que interferem, de alguma maneira, com o seu percurso." (António Resende de Oliveira)