O riso e o brilho,
REUNIÃO ALARGADA DA OBRA DE UMA ARTISTA PORTUGUESA INTERNACIONALIZADA: HUMOR E SEDUÇÃO NUM RETRATO DO PAÍS
O PERCURSO artístico de Joana Vasconcelos nos últimos 15 anos pode bem aspirar a transformar-se num caso de estudo no âmbito da sociologia da cultura. Uma jovem artista portuguesa com pouco acolhimento entre os comissários locais rompe o carácter periférico do país e cria uma carreira internacional bem alicerçada em França, em Espanha e no Brasil. Que nada disto se tenha feito com o apoio do Estado nem das elites especializadas (qualquer artista que queira ser levado a sério deve abster-se de confessar que gosta do trabalho dela) torna o caso ainda mais excêntrico. Na verdade, Joana Vasconcelos é popular como só Paula Rego o consegue ser entre os nossos artistas visuais e tem hoje um estatuto mediático comparável a certos músicos e actores de cinema locais.
Como foi isto possível? Uma visita ao Museu Colecção Berardo ajuda a perceber o caso, e não apenas pelas obras que compõem a antológica “Sem Rede”. O que as muitas pessoas de todas as idades que lá vão encontram é um conjunto de esculturas e instalações que aliam quase sempre de modo muito hábil um forte apelo sensorial (o primeiro nível de leitura da obra, que atrai por exemplo as crianças), um denso enraizamento na cultura popular rural e urbana que gera um efeito de empatia imediato e uma capacidade de criar comentários sobre a realidade material e mental envolvente.
Nas melhores obras de Joana Vasconcelos, o lúdico, o glamour e o político combinam-se de forma engenhosa, evitando a alienação mas também a auto-indulgência do artista que pensa poder ser socialmente relevante só porque faz grandes declarações críticas e ideológicas através da sua obra. Esta mostra alargada é, pois, uma oportunidade de verificar um sentido de eficácia que atravessa trabalhos que sinalizam e comentam diferentes aspectos da realidade social. Pode ser a condição da mulher na ácida sedução de “A Noiva” (2001-2005), um aparatoso lustre feito com tampões menstruais; “Marilyn” (2009), um sapato de luxo feito com panelas e tampas; ou o seu contrário, “Burka” (2002), uma referência à condição da mulher islâmica. Pode abordar-se o mundo do showbiz e da moda, como na excelente “Passerelle” (2005), em que cães em faiança se vão partindo uns aos outros na pressa de desfilarem, ou entrar no campo do religioso e do comércio que o rodeia (“www.fatimashop” e “Fui às Compras”, 2002); abordar o consumo (“Luso Nike”, 2006) e a burocracia (“Airflow”, 2001); ou simplesmente criar imagens da neurose colectiva (“Sofá Aspirina”, 1997, ou “Cama Valium”, 1998).
Estas peças funcionam porque à sua concepção está subjacente um olhar sobre o mundo com diferentes níveis de aproximação. O efeito de sedução que as percorre vem precisamente dessa percepção de que há um caminho muito curto entre o belo e o banal, entre o exaltante e o repugnante, entre o ético e o frívolo. Isto falha quando há um desequilíbrio entre os factores que fazem a obra. E isso tem acontecido, por vezes, nos tempos mais recentes. A escala dos projectos vem-se tornando cada vez mais ambiciosa e mais literal nas referências convocadas. Nesse particular, a obra pagou a sua popularidade. Os tão insensados “Corações Independentes”, a intervenção na Ponte Dom Luís I e na Torre de Belém ou o recentíssimo labirinto de flores artificiais que se inclui nesta exposição podem ser exímios manuais de sedução do espectador, mas o seu poder de interpelação esgota-se no próprio artifício que os caracteriza. Esse é um risco que esta obra corre. A perda de uma ironia certeira em favor do gigantismo.
eja como for, é preciso dizer-se que ir ao Museu Colecção Berardo por estes dias é, globalmente, encontrar um corpo de trabalho capaz de interpelar a nossa realidade sociocultural através da arte. E isso não é pouca coisa.
* 13 Mar 2010
* Expresso Actual
* Texto de Celso Martins
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