por Valdemar Cruz
[Expresso, 27 de Março]
[Expresso, 27 de Março]
Nunca sobe à cratera. Creonte nunca desde aos subterrâneos. Antígona nunca desiste, quando o mais fácil seria ceder. Creonte percebe tarde de mais a dimensão da tragédia criada pelo labirinto da sua intransigência. Antígona é mulher e clama o direito de dizer ‘não’ num tempo governado por homens. Creonte é um tirano cheio de dúvidas. Antígona não tem medo de morrer. Creonte desejaria ser tragado pelo vulcão que no cenário se impõe como metáfora maior do turbilhão contido neste conflito feito de contradições, mágoas e ressentimentos. Num tempo tão despojado de valores éticos, políticos ou morais, não deixa de alguma nobreza de carácter”. Não era uma anarquia organizada, materializada no empunhar de bandeiras pretas, “mas anarquia no sentido de contra a corrente”, sublinha Nuno Carinhas. De resto, foi nesta peça que pela primeira vez, através de Sófocles, a palavra ‘anarquia’ foi inscrita. Na Grécia antiga, as mulheres não tinham um papel político. Até por isso, Nuno não quis apresentar um olhar feminino ou feminista, mas interessa-lhe tentar perceber “como é que os gregos reagiriam quando assistiam à representação, sabendo que por trás de uma máscara estava um homem que representava uma mulher”. Com um texto muito marcado pela importância dos valores, o encenador fez questão de chamar a atenção dos actores para a necessidade de “nunca abandonarem a espessura da argumentação, fossem homens ou mulheres, guardas ou reis”. Há ali uma permanente reflexão sobre tudo e de forma tão elaborada que ultrapassa a dimensão específica de cada uma das personagens. Funcionam como coro de ideias, e é como “se a peça fosse construída como uma única cabeça que vemos por dentro e à volta”.
Quando a cena se abre por completo, depois de uma espécie de prólogo com Antígona e a irmã, Ismena, que nos apresenta todo o drama em construção, surge Creonte no cimo de uma cratera, formada por uma estrutura concêntrica, numa espécie de anfiteatro ao contrário. Durante longos minutos, e devido ao efeito de luz, não se percebe qual a matéria, qual a textura daquela cratera de enorme beleza e com uma dimensão visual muito táctil. Por fim, revela-se a cortiça, um material já proposto por Carinhas para a cenografia de “Cabelo Branco É Saudade”. Agora apeteceu-lhe voltar àquele material de “forma mais abundante e mais determinante. Ao pensar naquela cratera, naquela paisagem vulcânica, achei que a cortiça tinha já na sua textura esses veios, como de lava quase gelada que tinha ficado ali esculpida”. Num trabalho ancorado numa forte metáfora do poder e das hierarquias, impõe-se a presença do coro como se fora uma outra personagem. Não apenas pelo modo como todos estão tão austeramente vestidos com casacos compridos. Não apenas por, apesar do conjunto, manterem uma forte individualidade. Mas antes de tudo por surgirem como personagens actuantes. Como diz Nuno, “são uma espécie de espelho nosso”. Estão em cena a presenciar de forma activa o que se passa e, por vezes, a condicionar o que se passa. ser surpreendente a actualidade da proposta de Nuno Carinhas, de regresso a Sófocles e à coragem de uma mulher, Antígona, disposta a sacrificar a própria vida em nome de um princípio. A revolta da filha de Édipo contra a decisão de Creonte de proibir o enterro de seu irmão Polinice, por ter lutado contra a cidade de Tebas, resultava então numa tragédia pejada de mortes. 2500 anos depois, a desgraça reside sobretudo na constatação de que aquele rosto, aquela mulher, aquela capacidade de enfrentar o poder, aquela disponibilidade para defender uma causa é cada vez mais necessária, mas está cada vez mais moribunda.
por Valdemar Cruz
[Expresso, 27 de Março]
[Expresso, 27 de Março]
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