O conceito de recristalização, a lenta transformação geológica dos minerais, haurido na esfera da mineralogia, é profícuo quando pensamos na obra de Magalhães. Trata-se de uma metáfora operacional, não só no que concerne ao cuidado na manutenção/transformação da obra já publicada, mas também na reactualização dos temas e formas de os tratar.
Em Um Toldo Vermelho, Joaquim Manuel Magalhães revisita-se e reescreve-se, uma vez mais, no sentido da exclusão. O que sobra é resultado de uma violenta depuração.
Magalhães não só rasura e reescreve versos e poemas inteiros, como altera a ordem de apresentação dos textos. Neste sentido, Um Toldo Vermelho, mais do que um exercício de linguagem, é a reconfiguração de uma vida.
Nada de novo, já em 1988, Graça Capinha notava, a propósito de Alguns Livros Reunidos:
«Reduzem-se versos, estrofes, poemas. Passos há que desaparecem na sua totalidade. Outros são agora interrompidos por novos espaços entre estrofes» (Capinha, 1988:195).
A diferença é que agora, a nota final, assume um tom testamentário:
"Este volume constituí a minha obra poética até 2001, a que acrescento um poema publicado em 2005.Exclui e substitui toda a a anterior."
A título de exemplo veja o que fica e o que muda neste «Inverno em Vila Real»:
Inverno em Vila Real. O nevão
cobria a rua do liceu.
Uma luva de cabedal amodorrado
no tampo, o vapor do alento
liga-nos à toada indiferente.
O meu tumulto ensombra-te.
Um pombo protegido no beiral,
acabeça na plumagem de procela.
Tu calado, eu afeito ao silêncio, delineava-seno compêndio e numa bolsa a letra
do nosso nome, de maneira a desenhar
uma única sílaba fora de alfabeto algum.
Que bem tão mal ali se convinha, se
faltava à aula na sediciosa ocasião
de um inaugural amor.
O foro furtivo já desagregava.
Nem eu te quereria
na luta em sobressalto do meu rumo.
Porém, sempre que falarem da neve
e o que for teu vier pela avenida
em direcção à confeitaria
algo do desaparecimento, quem sabe lembrará.
Joaquim Manuel Magalhães, Um Toldo Vermelho (2010)
Era de inverno, em Vila Real. A neve
cobria as ruas que levavam ao liceu.
Dentro da confeitaria, as luvas de cabedal
no tampo do vidro, o vapor da respiração
ligava-nos entre as conversas de mesa indiferentes.
E querias olhar para mais dentro de mim.
Os pombos escondidos nos beirais tapavam
a cabeça na plumagem de chumbo, cor do céu.
Calados, afeitos ao silêncio, enlaçámos
em cada um dos nossos livros a primeira letra
dos nossos nomes, de modo a desenharem
uma única letra que não havia em alfabeto nenhum.
Que bem que estávamos tão mal ali sentados,
a faltar às aulas, nessa primeira vez
em que nos acontecia, sem sabermos, um amor.
Tu não ias adivinhar as leis secretas
que já nos separavam. Tu não podias
lutar na via de sangue da minha vida.
Mas sempre que tombar neve em Vila Real
e desceres a avenida a caminho do café
de alguma destas coisas, quem sabe, te hás-de lembrar.
Joaquim Manuel Magalhães, Segredos, Sebes e Aluviões (1988)
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"O poeta pode dar-se ao luxo de burilar significativamente o poema, reduzindo-o à sua essência, quase como se de um resumo se tratasse - uma paráfrase, ainda poética, - porque sabe que conhecemos de antemão o contexto primeiro do mesmo. Porém, lê-los pela ordem inversa resulta numa experiência de leitura completamente diferente.
E poderíamos viver só com a segunda versão? Poder... podíamos. Mas não era a mesma coisa." [João Luís Barreto Guimarães]
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