[imagem daqui]
A ÁRVORE
RUI MANUEL AMARAL
Não me lembro quando começou. Não sou bom a memorizar datas. Mas tenho ainda presente o espanto, o assombro, o medo, o assombro e o espanto que senti quando, uma manhã, ao acordar, dei de caras com a árvore. Uma árvore imensa plantada no meio do apartamento. Um gigante de longas raízes negras, que irrompera do fundo do soalho, durante a noite. Os ramos, tão numerosos como uma floresta, cobriam todas as divisões. As folhas farfalhavam no ar e batiam-me nos olhos.
Nesse mesmo dia, cortei-a pela base e livrei-me daquilo tudo. À noite, estendi-me na cama e adormeci muito satisfeito. Na manhã seguinte, porém, a árvore achava-se no mesmo local da véspera. E parecia ainda maior e mais frondejante. Cortei-a de novo e tudo se repetiu: de manhã lá estava o monstro verde, conspirando pacífica e vegetalmente, no meio do apartamento. No meu desespero, cheguei a queimar toda a madeira num instante. Mas bastavam alguns segundos para ela irromper do chão, ainda mais convincente e definitiva, e lançar os ramos contra os vidros.
Nesse mesmo dia, cortei-a pela base e livrei-me daquilo tudo. À noite, estendi-me na cama e adormeci muito satisfeito. Na manhã seguinte, porém, a árvore achava-se no mesmo local da véspera. E parecia ainda maior e mais frondejante. Cortei-a de novo e tudo se repetiu: de manhã lá estava o monstro verde, conspirando pacífica e vegetalmente, no meio do apartamento. No meu desespero, cheguei a queimar toda a madeira num instante. Mas bastavam alguns segundos para ela irromper do chão, ainda mais convincente e definitiva, e lançar os ramos contra os vidros.
Pouco a pouco, desisti de lutar contra os desígnios da natureza, se assim me posso exprimir. Tentava concentrar-me nas velhas tarefas domésticas, mas a minha atenção perdia-se por entre os ramos, nas folhas verdes e amarelas que ondulavam pelo tecto como borboletas caprichosas. Entretanto, um pássaro começou a cantar, depois outro e outro ainda, e pequenos animais despontaram de todos os lados, correndo e escondendo-se na erva.
Daí por diante, a casa transformou-se num bosque interminável, cheio de ruídos misteriosos, locais sombrios, segredos profundos. Por esta altura, creio que já não consigo encontrar a porta da rua. A vida nos bosques não é a melhor coisa do mundo, mas são tempos difíceis estes em que vivemos. E de um modo geral, tenho de o dizer sem falsa modéstia, estou a sair-me bem.
Daí por diante, a casa transformou-se num bosque interminável, cheio de ruídos misteriosos, locais sombrios, segredos profundos. Por esta altura, creio que já não consigo encontrar a porta da rua. A vida nos bosques não é a melhor coisa do mundo, mas são tempos difíceis estes em que vivemos. E de um modo geral, tenho de o dizer sem falsa modéstia, estou a sair-me bem.
Amaral, Rui Manuel, Doutor Avalanche, Angelus Novus, 2010 [pg. 39]
O PROBLEMA DE SER NORTE, Filipa Leal
Era um verso com árvores à volta.
Tinha o problema de ser norte
e dia e tão contrário à natureza.
Era um verso sem ar livre
mas com árvores em círculo
e eu no centro, em baixo, nas escadas
de pedra, cheia de verde e de frio
e a pensar que continuo a não entender
a natureza contrária aos meus olhos.
Pois se as árvores são a única
paisagem deste verso, a toda a volta,
e eu no fundo, em baixo, nas escadas
de pedra ainda, se voltando-me, morrendo,
serão elas ainda a única paisagem deste verso,
como poderei amá-las
sem que
um
raro
silêncio ainda
me interrompa?
Filipa Leal, O Problema de Ser Norte, Deriva Editores
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