"A Outra": O ponto de vista do fantasma
por José Mário Silva (daqui)
Em 2004, numa das suas crónicas no "Público", Ana Teresa Pereira escreveu o seguinte: "No conto 'O Desenho no Tapete' (...), Henry James fala do 'segredo' que o autor vai tecendo no próprio corpo do texto, o fio no qual estão enfiadas as pérolas, enfim, a verdadeira história que, se o romance ou conto tiver vida, está em todas as partes, e é contada por cada palavra, por cada sinal de pontuação. Claro que se existe um inconsciente do texto, e eu não tenho dúvidas de que existe, o autor pode ser o último a saber ou até nunca saber. Em 'A Volta no Parafuso', James deixou falar livremente o seu desejo e o seu medo. Mas é o nosso desejo e o nosso medo que vamos encontrar na novela."
Foi a partir desta projeção da escritora madeirense numa história alheia que nasceu o seu livro mais recente: "A Outra", um conto perfeito, daqueles que apetece ler em voz alta, várias vezes - pecando apenas por ser demasiado breve e por apresentar uma estrutura narrativa tão elíptica, tão reduzida ao mínimo dos mínimos, que se torna opaca para quem não conheça a novela de James.
Publicada em 1898, "A Volta no Parafuso" é uma ghost story em que uma precetora chega a um casarão na província para cuidar de duas crianças (Miles e Flora), cujos pais morreram e de quem o tio não se pode ocupar. Um dia, ela começa a ver o que aparentemente mais ninguém vê: um homem e uma mulher que correspondem às descrições de Miss Jessel, a anterior precetora, e Peter Quint, o seu amante, ambos mortos.
A narradora convence-se de que os meninos também reconhecem os fantasmas e que estes querem roubá-los. O desenlace é trágico. Ainda hoje, há discussões entre os leitores da novela em torno da questão de saber se os fantasmas eram reais ou apenas alucinações, fruto de um estado psicótico da protagonista. Depois de Freud, a história fantástica de James até pode ser reduzida a um caso clínico, mas não perde a sua capacidade de nos perturbar.
Virar a história do avesso
O que Ana Teresa Pereira faz não é apenas contar de novo esta história. É olhá-la de outra perspetiva. É virá-la do avesso, para nos mostrar o ponto de vista de Miss Jessel, o fantasma. É, no fundo, invadir o território de James com a sua própria linguagem: ali onde um se demora, construindo lentamente a tempestade, a outra espalha relâmpagos, fragmentos curtos, súbitos clarões. E, como sempre nos seus livros, há insistências, simetrias, circularidades, imagens que se repetem vindas de obras anteriores: as charnecas batidas pelo vento, as flores; ou o lago "assombrado", com uma "leve neblina" a nascer das águas.
No princípio, vemos como Miss Jessel se predispõe a desempenhar o papel principal, semelhante ao das heroínas dos romances que lia às escondidas do pai ("Jane Eyre" e "O Monte dos Vendavais", com esse Heathcliff capaz de lhe tirar o sono).
Ela é bonita e tem consciência da sua beleza: cabelo cor de cobre pela cintura, olhos azuis, uma aura como a das mulheres etéreas e carnais pintadas por Dante Gabriel Rossetti. Já Quint parece uma "versão áspera e brutal" do seu patrão, o senhor de Bly, de cujas roupas e pose se apropria. Ele é o homem omnipresente, à janela ou no cimo da torre, o que tem "todo o conhecimento das coisas selvagens", o ator ("quase como alguém", mas "só quase") que há de representar com Miss Jessel uma "peça diabólica", em que no limite usurpam as próprias crianças: "E Miles e Flora caminhavam num mundo criado por nós. E sentiam-se protegidos, e felizes."
Até que a morte os relega para o lugar de quem não encontra "o caminho para o Céu ou para o Inferno".
Quando, por fim, se reconhecem e enfrentam, as duas precetoras tocam no tal "segredo" mais fundo do texto: "Por quem está apaixonada a precetora de cabelo castanho?" A resposta óbvia seria Quint, mas Ana Teresa Pereira, na crónica de 2004, insinua que pode ser Miles. Na verdade, tanto faz. Porque "os fantasmas de Bly são os nossos" e, tal como em relação à história original de James, "é o nosso desejo e o nosso medo que vamos encontrar".
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