Exactamente Antunes, a partir de NOME DE GUERRA de ALMADA NEGREIROS , JACINTO LUCAS PIRES



 [Acto 1, Cena 6]
    ÀS VEZES O DIA COMEÇA À NOITE
      À SEGUNDA VEZ QUE SE NASCE, ASSISTE-SE AO PRÓPRIO NASCIMENTO
      AS PESSOAS PÕEM NOMES A TUDO E A SI PRÓPRIAS TAMBÉM
  UM PAR SEM OUTRO SENTIDO ALÉM DE PAR
                     QUANTO MAIS SE SABE, MAIS VAI FICANDO POR SABER

[Ao mesmo tempo, uma canção com estas palavras baralhadas? Esta letra em cima da música o É pr'amanhã, do Variações?]

Às vezes os nomes começam pessoas
À segunda vez, somos um número par
Se ele há dias maus, ai ela há noites boas
Tantas pessoas ficam por começar

Quanto mais tudo, tudo tão mais além
Nenhum sentido que não o musical
Chama-me nomes a ver se sou alguém
Matas-me bem e não fazes por mal

Nesta hora , Sophia de Mello Breyner Andresen,

Nesta hora

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo


Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade


Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida


O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade

Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe


A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados


Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão 

Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão


Para construir o canto do terrestre
- Sob o ausente olhar silente de atenção –


Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste 


Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra poética III, 2ª Edição, Editorial Caminho, Lisboa, 1996, pág. 197-198.

Dactilografia, Álvaro de Campos

Dactilografia

Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra ...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Ergue a voz o tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Álvaro de Campos

Man on Wire

«foi em 8 de Março de 1914 » - Génese dos heterónimos


«Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer urna partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espé­cie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qual­quer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só.» "in  Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos

Quando as irmãs no Carnaval | Adília Lopes

 Carnaval sur la plage, Ensor

Quando as irmãs no Carnaval
(sobretudo no Carnaval)
iam a bailes
e ela ficava em casa
porque não a tinham convidado
escrevia no diário
a verdadeira vida está nos bailes de Carnaval
a que as minhas irmãs vão
e quando uma noite num baile de Carnaval
a que as irmãs lhe pediram que fosse
mascarada de órfã
ela ficou sentada entre um espelho e um reposteiro
a ver as irmãs dançar
pensou
quem me dera estar no meu quarto
a escrever no meu diário
perdi o hábito de escrever no meu diário
«gostava de dançar»
sentiu uma pontada no joanete do pé esquerdo
(um joanete minúsculo
mas em todo o caso um joanete)
e descalçou o sapato com o outro sapato
as irmãs apareceram-lhe todas de repente
já com os abafos vestidos
e ela na atrapalhação de não ficar para trás
esqueceu-se do sapato
debaixo da cadeira
era um sapato de salto raso
e de sola fina
não se dava muito pela falta dele
quando ela deu pela falta dele
ainda estava na escada
mas por acanhamento
não voltou atrás
voltou no dia seguinte
a uma hora a que só podia ver as criadas
(que a intimidavam mais que a dona da casa
mas bem menos que as filhas da dona da casa)
desculpe vir a esta hora
mas acho que deixei cá ontem à noite
um sapato
e as criadas tiveram tanta pena dela
à vista do sapato
que a levaram para a cozinha
e lhe deram leite-creme e pãezinhos doces
a mais velha embrulhou com muito cuidado
o sapato
e ela despediu-se das três com um aperto de mão
desceu pela escada de serviço aliviada
com o embrulho debaixo do braço
mas ouviu uma risada para os lados da cozinha
encolheu os ombros
o sapato tinha custado uma fortuna
era italiano de pelica

Adília Lopes



A intriga, James Ensor

Tédio existencial pessoano

Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reincarnar, reincarnarei sem mim, sem ter eu reincarnado.
Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu.
Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Ed. Ática,1982