Importa-se de parar de olhar para mim?, de Paulo Kellerman
De repente, ele diz: importa-se de parar de olhar para mim?
Sinto um súbito embaraço, vergonha misturada com surpresa, vontade de fugir; ou de reagir; mas limito-me a murmurar, em tom humilde: peço desculpa. E volto a cabeça, ostensivamente.
Penso que ninguém se terá apercebido desta breve troca de palavras, ou que ninguém se tenha importado, se tenha surpreendido, o que limita o meu embaraço. Mas o autocarro está cheio - imagino que esteja cheio - e é impossível mudar de lugar; tenho de permanecer aqui, em frente a este homem que acabou de me proibir de o olhar; e não sei bem o que fazer: olhar para a direita ou para a esquerda rapidamente me provocará dores no pescoço, e talvez na coluna; e, neste momento, já tenho doressuficientes. Por isso, penso que resta olhar para os sapatos; pergunto-me por que se terá incomodado o homem com o meu olhar; depois, tento imaginá-lo: pela voz, suponho que será alguém mais velho que eu; talvez seja um pouco atarracado, pequenino: vozes agressivas compensam, muitas vezes, estaturas minúsculas; talvez um aposentado precoce, por motivos de saúde; alguém contrariado, que se considera demasiado infeliz, injustamente maltratado pelas forças do universo; um homem dolorosamente banal, que sabe que a sua passagem pelo mundo não modificou absolutamente nada. Ou seja: alguém que me poderia entender. Mas estou a fantasiar, como sempre faço. A sua inesperada agressividade indispôs-me contra esta pessoa, que talvez até seja encantadora. Mas também tenho o direito de me indignar, de ser irracional: e apesar de não o conhecer, odeio-o. Um daqueles ódios viscerais, que por vezes me corroem e dilaceram; o ódio intemporal e genérico que transporto na minha alma, desde sempre, e que por vezes não consigo deixar de focalizar em alguém específico, como se fosse esse alguém a causa única da minha raiva.
Tento distrair-me, com as divagações habituais: sendo cego, deveriam permitir que olhasse para onde desejasse; para os outros, deveria ser indiferente que os olhasse ou não, já que não os posso ver; contudo, acontece o contrário: apesar de não ver, meu olhar parece incomodar mais que o olhar dos que podem ver. Como se imaginassem o meu olhar como uma acusação, um pedido de desculpas. E vou pensando nisto, remoendo os mesmos pensamentos de sempre, as mesmas lamentações de sempre, as mesmas culpas de sempre.
O tempo vai passando, devagarinho e escuro. Esforço-me por me manter distraído, o que é fundamental para não cair na tentação de ter pena de mim, de me chorar; penso no homem e tento odiá-lo, tranquilamente, anonimamente; na verdade, preciso de odiar os outros - um outro qualquer - para não me odiar a mim, ou para esquecer que me odeio.
Gostava de ser uma pessoa normal, fazer o que faz uma pessoa normal: olhar pela janela, por exemplo. E ver. Olhar lá para fora; ver a paisagem desfilar; e não pensar, não pensar, em nada. Olhar, simplesmente: porque olhar e ver é fugir; e eu estou preso em mim. Condenado a mim.
O autocarro pára e o homem sai; sinto-o passar junto de mim, respiro o seu cheiro, a sua hostilidade, a sua pressa. Não resisto a imaginar-lhe um destino; e como sempre, os destinos que fantasio para aqueles que odeio representam os destinos que desejo para mim mas sei que nunca viverei; o que me permite aprofundar o ódio, descobrir novas nuances no ódio que preciso de ir alimentando, para que depois me alimente dele. Mais importante que tudo: é preciso distrair-me de mim. Fingir que posso fugir.
Estou tão absorvido que, de início, nem reparo que a mulher que se senta ao meu lado falou para mim; mas depois, quando percebo o sentido da sua frase, compreendo que só pode estar a dirigir-se a mim. Disse ela: sabia que o senhor que acabou de sair, aquele que se chateou consigo, também era cego?
Não, claro que não fazia ideia. No meu silêncio, ela adivinha a minha resposta; e não insiste no diálogo - que certamente não lhe interessa -, sente que já cumpriu a sua função. Deixa-me só, com a minha estupefacção. Penso no inesperado da situação, no ridículo: dois cegos a olharem-se, sentindo que estão a ser olhados, incapazes de suspeitar que estão a ser olhados por outro cego. Olham: mas não vêem nem são vistos. E fico a pensar nisto. Não ver nem ser visto; ou seja: não existir. Fico a pensar nisto durante muito tempo. Distraído.
Paulo Kellerman, in Gastar Palavras
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