O RETRATO , Ana Luísa Amaral


O RETRATO
Ora esguardae,
escreveu o outro,
quando dele falou nas suas crónicas.
 Eu digo que se esguardardes demais
pondes o vosso coração em perigo,
porque ficar eis a saber
o que talvez não vos seja de interesse,
as verdades que tínheis como certas.
Esguardar é considerar,
e eu não sei se deveis considerar verdadeiramente a sua história
ou se não é preferível que vos fiqueis junto aos mitos,
às histórias que se contaram e o fizeram grande,
a ele, que tal não se considerava
depois da morte daquela que amava.
 
Basta olhar para aquele seu retrato
e para a angústia nos seus olhos.
 Ora esguardae essa angústia
sem esguardardes a história como vos foi contada.
Talvez então o muimento de alva pedra
comece a fazer outro sentido,
e, com ele, os bichos que o povoam:
as caras dos algozes?, as faces
dos tempos que corriam?, cheios de doenças,
de febres, tempos assustados.
Esguardae esse retrato:
a sua barba, a mão que ali foi posta a segurar a espada,
a capa, tão vermelha, sobre os ombros.
 
Dele falaram e da sua amada.
Esguardae o seu olhar, cuidadosamente,
e vereis que é um olhar enrouquecido pela loucura.
Pensará nela?
Não são as dobras em relevo
da tinta de óleo do retrato
que poderão dar-vos a resposta.
Só a memória dessas dobras e da tinta espessa
saberia dizer-vos se era nela que ele pensava,
 mas a essa memória não tendes vós acesso.
Nem às memórias
de quem pintou o retrato,
ido há tanto tempo como o seu modelo.
Não sei se eu não terei tido
uma pequena entrada nessas memórias,
eu, seu escudeiro, que o servi
e ouvi tantas vezes os gritos entre ele e seu pai.
Eu, que vi, replicados em espelho,
amores seus iguais ao primeiro amor,
e de como desejou erguer noutros lugares túmulos
 tão belos como aquele que erguera
em honra da morte, branco e belo.




É  o primeiro amor o mais gentil,
O melhor sempre?
 Como dizer do ponto central da paixão,
quando mente e corpo,
recuados antes e protegidos pelo terror daperda,
se deixam enfim conquistar?
Teria o pintor pensado nisto
no instante em que prendeu aquele olhar?
Entrei várias vezes na sala,

levando vinho e bolos,
mas o pintor estava sempre de costas para mim.

E eu pousava a bandeja na mesa
e afastava-me, sem uma palavra.

Nunca me chamou para junto de si, o meu senhor,
nos dias em que posou para o retrato.
Nem nunca teve comigo confidências
sobre aquela que perdera,
 por obra de seu pai.

Mas eu, porque o servia todas as manhãs
e o acompanhei durante tanto tempo, e à sua dor,
eu conhecia-lhe os tons,
as paletas de cor por detrás da íris dos olhos,
as formas mutantes
conforme as jardas do sofrimento.

E juro que o pintor
soube resguardar o seu olhar.
Como se fôsseis presente
podeis agora esguardá-lo.
E meditar sobre ele.


                                                                              Ana Luísa Amaral, in Vozes

Nenhum comentário: