Novas Cartas Portuguesas.


Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa foram levadas a julgamento em 1973, devido aos trechos ditos "imorais e pornográficos" contidos em Novas Cartas Portuguesas. Neste livro critica-se o patriarcado e questionam-se vários aspectos da vida nacional (a condição da mulher, a guerra colonial, a emigração, entre outros), utilizando como instrumento de luta uma linguagem que se ancora numa tradição literária que remonta às famosas cartas de Mariana Alcoforado ao Cavaleiro de Chamilly.
Essas cinco cartas de Soror Mariana do Alcoforado são a base deste livro, constítuido por nove carta, poemas e pequenos ensaios.
O excerto que se seguefaz parte das Novas Cartas Portuguesas, mas foi retirado ipsis erbis do Código Penal de 1971. Esta lei só foi revogada em 1982...

«Código Penal Português


Artigo 372º

(Provocação constituída por adultério ou corrupção de menores como provocação)

"O homem casado que achar sua mulher em adultério, cuja acusação lhe não seja vedada nos termos do artigo 404§, § 2º, e nesse acto matar ou a ela ou ao adúltero, ou a ambos, ou lhes fizer alguma das ofensas corporais declaradas nos artigos 360º, nº 3º a 5º, 361º e 366º, será desterrado para fora da comarca por seis meses.
§ 1º - Se as ofensas forem menores, não sofrerá pena alguma.
§ 2º - As mesmas disposições se aplicarão à mulher casada, que no acto declarado neste artigo matar a concubina teúda e manteúda pelo marido na casa conjugal, ou ao marido ou a ambos, ou lhes fizer as referidas ofensas corporais.
§ 3º - Aplicar-se-ão também as mesmas disposições, em iguais circunstâncias, aos pais a respeito de suas filhas menores de vinte e um anos e dos corruptores delas, enquanto estas viverem debaixo do pátrio poder, salvo se os pais tiverem eles mesmos excitado, favorecido ou facilitado a corrupção. »


Outro texto de NOVAS CARTAS PORTUGUESAS:

O PAI
Era perversa:
dormia toda nua, os peitos soltos e brandos muito brancos e expostos tal como os seus mamilos largos, róseos, distendidos.Durante o dia andava em casa com as blusas desabotoadas e sentava-se de qualquer maneira com os fatos a subirem-lhe sempre a meio das coxas, deixando antever entre as pernas uma escuridão macia, amolentada na sua meia penumbra.

Era perversa:

deitava-se nos sofás, ao comprido, os braços atirados para trás e ficava assim, toda lisa, ao seu alcance, sem mal, a passar a língua aguda pelos lábios já húmidos

Era perversa:

de um louro fundo, a pele penugenta, os olhos de um azul duro, sempre adormentados

Era perversa:

rodeava-lhe com os braços o pescoço, os seios a esmagarem-se-lhe de encontro ao peito e o hálito morno, sedoso, a roçar-lhe a nuca, a rastejar-lhe perto, como que entorpecido de saliva.

Era perversa:

Deixava a porta entreaberta, esquecida, enquanto se despia devagar, a descobrir o ventre brando, os ombros magros, devagar em breves movimentos, em secretos sons e pactos com a infância.

Era perversa:

trazia os cabelos em desalinho e mornos de sono quando o beijava de manhã, a dar-lhe os bons-dias, com uma distracção de hábito tomada.

Era perversa:

dormia toda nua, os peitos soltos e brandos muito brancos e expostos tal como os seus mamilos largos, róseos, distendidos.

Quando entrou no quarto o homem hesitou, a olhá-la, a fixá-la no seu sono, mas logo avança, silencioso, e de manso pára junto à cama a hesitar novamente. Depois estende uma das mãos, desliza-a na curva suave do peito, na anca quente, doce, o dedos crispados a entranharem-se já nos pêlos sedosos da púbis.Curva-se quando ela acorda e tapa-lhe a boca com força, brutal, mantendo-a deitada, firmemente, debaixo do seu corpo agora ao comprido sobre o dela.
Era perversa:tinha um riso liberto, sedento, e uma maneita envolvente de olhar os outros; um odor enlouquecido a entreabrir-se aos poucos, como um fruto, obsessivo: obsessivamente, obsessivamente.
Indiferente, Mariana sente que ele sai de dentro de si, sujando-a de esperma também por fora. Depois vê-o que se levanta da cama, se veste à pressa e se vai embora sem a olhar, todo o tempo mudo, mesmo enquanto a forçara, mudo mesmo quando a tivera, rendida, afundada naquele torpor, de onde não quer sair nunca mais, cada hora mais fundamente perdida.«- Tens de deixar esta casa - disse-lhe ele numa voz neutra, monocórdica - não podemos continuar a viver todos juntos na mesma casa depois do que se passou. Foste a culpada de tudo, bem sabes que foste a culpada de tudo, eu sou homem; sou homem e tu és provocante, perversa. és perversa. Uma mlher sem vergonha, sem pudor. Não te quero ver mais, enojas-me, repugnas-me, envergonhas-me. Tu percebias, sei que percebias, que sabias como me punhas. Eu sou homem minha puta.»

- Claro que sou uma puta, podes estar tranquilo, pai, sou uma puta.

«- Grande cabra - chamou-lhe a mãe quando ela se dirigia para a porta da rua, agarrada às paredes para não cair. - Grande cabra.»

23/4/71 in Novas Cartas Portuguesas