UM AR DE FAMÍLIA atrai para o mesmo lugar problemático uma afirmação de Hölderlin - de uma carta enviada à mãe - e dois versos de Herberto Helder: um, designando a poesia como «a ocupação mais inocente de todas»; o outro, enunciando o princípio que coloca a poesia nas regiões do terror e liberta nela um núcleo trágico: «- o inferno! alguém disse: afastem de mim a inocência/ eu falo o idioma demoníaco». A falsa e irónica inocência de Hölderlin revelou-se, afinal, como um saber que inaugura uma idade heróica da literatura. Herberto Helder pertence ainda a esta idade.
Princípio importante deste «ethos» heróico (que toda a poesia moderna fortemente reivindicou): o poeta constitui-se única e exclusivamente através da sua obra (e, desse modo, não coincide com um indivíduo que tem uma determinada identidade civil), a qual deve escapar a todos os factores pessoais e sociais que a alienam. Dito de outro modo, ela não deve legitimar-se senão no interior de um espaço literário autónomo. «Les honneurs déshonorent», disse Flaubert contra o sucesso mundano. As recusas e resistências de Herberto Helder - ou melhor e mais radicalmente: a decisão de, enquanto poeta, não existir senão através da sua poesia - encontram nessa frase do escritor francês um sentido muito evidente.
Durante anos, habituámo-nos a designar a sua «Poesia Toda». Mas esse «corpus» volumoso foi reduzido, em 2001, a uma «súmula», acompanhada desta advertência: «para dizer que é uma ressalva ao poema contínuo pelo autor chamado poesia toda. O poema contínuo parecia não exigir a escusa das partes que não eram punti luminosi poundianos, ou núcleos de energia assegurando uma continuidade imediatamente sensível. O livro de agora pretende então aceitar a escusa e, em tempos de redundância, estabelecer apenas as notas impreteríveis para que da pauta se erga a música, uma decerto não muito hínica, não muito larga nem límpida música, mas este som de quem sopra os instrumentos na escuridão (...)».
Um estreito laço familiar aproxima também «os tempos de redundância» apontados por Herberto Helder e «o tempo de indigência» de Hölderlin - razão da sua pergunta inquietante: «Para quê poetas?» Na nota que citámos, coloca-se de maneira explícita a questão da condição epocal da poesia. E não é certamente exagerado dizer que a de Herberto Helder (e alguns, raros, textos e «extratextos», como este aqui citado) obriga, de maneira radical (e como nenhuma outra, na poesia portuguesa contemporânea), a questionar o próprio lugar e estatuto da poesia, hoje. Porque ela designa um «espaço literário» que só podemos reconhecer como intempestivo. Não se entra nela senão interrompendo o curso do mundo, suspendendo as linguagens da história e pondo entre parêntesis as circunstâncias empíricas. Eis a literatura como utopia.
Essa drástica redução da Poesia Toda operada em Ou o Poema Contínuo (2001) é agora confirmada em A Faca Não Corta o Fogo. De certa maneira, esta concepção do «poema contínuo», da obra como poema único que pode ser ampliado sem quebras, responde à exigência de caminhar para um ponto onde só a linguagem age, com todo o seu poder, suprimindo a pessoalidade e, de certa maneira (não como Mallarmé, mas também não o ignorando), erradicando o autor. Na poesia de Herberto Helder não há psicologia, nem confidencialidade, nem biografia - estamos noutro mundo, mais difícil de reconhecer e de habitar. O que nela emerge é uma paixão puramente literária. Ora, em «tempos de redundância», o grande «escândalo» de Herberto Helder é o de se furtar à esfera mundana da «vida literária», deixando que apenas a sua obra exista e siga o seu curso sem quaisquer interferências do exterior. Repare-se que a única entrevista que se lhe conhece é uma «auto-entrevista».
Esta atitude, que não devemos reconduzir a uma mera «idiossincrasia», ganha hoje um sentido fundamental. O que é que se acelerou nas últimas décadas? Acelerou-se a perda de autonomia dos escritores e do campo literário em geral, um campo que deixou de reivindicar o direito a ser ele próprio a definir os princípios que o legitimam. A legitimidade passou a ser outorgada pela instância do mercado e por factores mundanos, que ditam as regras da consagração. E a literatura de entretenimento ganhou um poder desmesurado, quase deixou de ser reconhecível como tal, como se só ela existisse. Por isso é que a obra de Herberto Helder é intempestiva: conduz-nos para um espaço e um tempo que lançam um forte desafio a todo o contexto, não apenas o literário; fala um «idioma» que é cada vez mais difícil de escutar.
Na história da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, Herberto Helder ocupa a posição do «poeta forte», que provoca nos que vêm depois uma «angústia da influência». Já muitas vezes se falou deste poder totalitário que exerceu sobre poetas mais jovens, da atracção fatal que representou. Joaquim Manuel Magalhães escreveu um texto fundamental sobre esta questão. Entretanto, a poesia portuguesa seguiu maioritariamente por vias diferentes. Mas a luz que emana do fogo lento da poesia de Herberto Helder não se extinguiu nem um pouco. Sem ela, outra figura teria o último meio século literário português.
António Guerreiro, Actual (Expresso), 11/10/08
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