PREFÁCIO DA QUINTA EDIÇÃO de AMOR DE PERDIÇÃO
Publiquei, há vinte e dois anos, o romance Onde Está a Felicidade? - Pouco depois, Alexandre Herculano, republicou as Lendas e Narrativas, escrevia na Advertência: ...Nestes quinze ou vinte anos, criou-se uma literatura, e pode dizer-se que não há ano que não lhe traga um progresso. Desde as Lendas e Narrativas até o livro Onde Está a Felicidade? que vasto espaço transposto?”
Se comparo o Amor de Perdição, cuja 5ª edição me parece um êxito fenomenal e extra-lusitano, com O crime do Padre Amaro e O Primo Basílio confesso, voluntariamente resignado, que para o esplendor destes dois livros foi preciso que a Arte se ataviasse dos primores lavrados no transcurso de dezasseis anos. O Amor de Perdição, visto à luz eléctrica do criticismo moderno, “é um romance romântico, declamatório, com bastante aleijões líricos, e umas ideias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo". Eu não cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência de não devassar alcovas, a fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença de suas filhas ou de suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no seu quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de Perdição fez chorar. Mau foi isso. Mas agora, como indemnização, faz rir: tornou-se cómico pela seriedade antiga, pelo raposinho que lhe deixou o raço das velhas histórias do Trancoso e do padre Teodora de Almeida.
E por isso mesmo se reimprime. O bom senso público relê isto, compara com aquilo, e vinga-se barrufando com frouxos de riso realista as páginas que há dez anos aljofarava com lágrimas românticas.
Faz-me tristeza pensar que eu floresci nesta futilidade da novela quando as dores da alma podiam ser descritas sem grande desaire da gramática e da decência. Usava-se então a retórica de preferência ao calão. O escritor antepunha a frequência de Quintiliano à do Colete-encarnado. A gente imaginava que os alcouces não abriam gabinetes de leitura e artes correlativas. Ai! quem me dera ter antes desabrochado hoje com os punhos arregaçados para espremer o pus de muitas escrófulas à face do leitor! Naquele tempo, enflorava-se a pústula; agora, a carne com vareja pendura-se na escápula e vende-se bem, porque muita gente não desgosta de se narcisar num espelho fiel.
Pois que estou a dobrar o cabo tormeatório da morte, já não verei onde vai desaguar este enxurro, que rola no bojo a Ideia Novíssima. Como a honestidade é a alma da vida civil, e o decoro é o nó dos liames que atam a sociedade, lembra-me se vergonha e sociedade ruirão ao mesmo tempo por efeito de uma grande evolução-rigol-boche. A lógica diz isto; mas a Província, que usa mais da metafísica que da lógica, provavelmente fará outra coisa. Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5ª edição do Amor de Perdição quase esgotada.
Publiquei, há vinte e dois anos, o romance Onde Está a Felicidade? - Pouco depois, Alexandre Herculano, republicou as Lendas e Narrativas, escrevia na Advertência: ...Nestes quinze ou vinte anos, criou-se uma literatura, e pode dizer-se que não há ano que não lhe traga um progresso. Desde as Lendas e Narrativas até o livro Onde Está a Felicidade? que vasto espaço transposto?”
Se comparo o Amor de Perdição, cuja 5ª edição me parece um êxito fenomenal e extra-lusitano, com O crime do Padre Amaro e O Primo Basílio confesso, voluntariamente resignado, que para o esplendor destes dois livros foi preciso que a Arte se ataviasse dos primores lavrados no transcurso de dezasseis anos. O Amor de Perdição, visto à luz eléctrica do criticismo moderno, “é um romance romântico, declamatório, com bastante aleijões líricos, e umas ideias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo". Eu não cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência de não devassar alcovas, a fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença de suas filhas ou de suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no seu quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de Perdição fez chorar. Mau foi isso. Mas agora, como indemnização, faz rir: tornou-se cómico pela seriedade antiga, pelo raposinho que lhe deixou o raço das velhas histórias do Trancoso e do padre Teodora de Almeida.
E por isso mesmo se reimprime. O bom senso público relê isto, compara com aquilo, e vinga-se barrufando com frouxos de riso realista as páginas que há dez anos aljofarava com lágrimas românticas.
Faz-me tristeza pensar que eu floresci nesta futilidade da novela quando as dores da alma podiam ser descritas sem grande desaire da gramática e da decência. Usava-se então a retórica de preferência ao calão. O escritor antepunha a frequência de Quintiliano à do Colete-encarnado. A gente imaginava que os alcouces não abriam gabinetes de leitura e artes correlativas. Ai! quem me dera ter antes desabrochado hoje com os punhos arregaçados para espremer o pus de muitas escrófulas à face do leitor! Naquele tempo, enflorava-se a pústula; agora, a carne com vareja pendura-se na escápula e vende-se bem, porque muita gente não desgosta de se narcisar num espelho fiel.
Pois que estou a dobrar o cabo tormeatório da morte, já não verei onde vai desaguar este enxurro, que rola no bojo a Ideia Novíssima. Como a honestidade é a alma da vida civil, e o decoro é o nó dos liames que atam a sociedade, lembra-me se vergonha e sociedade ruirão ao mesmo tempo por efeito de uma grande evolução-rigol-boche. A lógica diz isto; mas a Província, que usa mais da metafísica que da lógica, provavelmente fará outra coisa. Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5ª edição do Amor de Perdição quase esgotada.
S. Miguel de Seide, 8 de fevereiro de 1879.
Camilo Castelo Branco
Um comentário:
Eu li o livro e adorei. Na minha opinião, está entre os melhores romances da literatura portuguesa e não concordo que seja um fracasso, muito menos que faça rir. É um romance simplesmente perfeito.
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