morte de camilo | Vasco Graça Moura

morte de camilo


quando camilo deu, como então diziam os românticos

afectando o maior desprezo pelo corpo, um tiro

nos miolos, o projéctil furou muitos milhares de páginas

que ele, na cegueira, já não conseguia ler, mas


guardava na cabeça. elas entraram assim em contacto,

umas com as outras, as dele e muitas mais, por esse

novo canal aberto pela bala. no exacto momento

da sua morte, tintas de sangue e dor insuportável,


ele deve ter reconhecido semelhanças e perdições,

reencontrado personagens e experiências

amarguradas a jorrarem, de súbito presentes,

deve ter entrevisto paisagens, rostos, torpezas, ironias,


intensidades próprias e alheias. camilo deve tê-las percorrido,

a velocidade do raio, numa fracção de segundo,

como numa espécie de nova ars combinatoria,

e compreendido as negras molas reais de tudo. nós só


não sabemos se então ainda lamentou já não poder

escrever esses enredos possíveis, fulgurantes numa prosa

cada vez mais dominada, mas que, corno sempre, da paixão

incontrolada e da morte e de rápidos traços se nutriam.

Vasco Graça Moura, “poemas com pessoas”

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