PINA BAUSCH

"A gente ouve daqui e dali e de si próprio, e o limiar da náusea vai-nos engolindo. Fuga & queixume: é triste tanta palavra que não sabe da morte de Pina Bausch. Mas é pior, é muito pior: tanta palavra que nunca soube que Pina Bausch alguma vez existiu, que pensa como se Pina Bausch nunca tivesse movido o pensamento." Luís Mourão


Pina Baush no Expresso

MUDOU O MUNDO DA DANÇA. UM EXERCÍCIO OBSESSIVO DE CUMPLICIDADE — COM OS INTÉRPRETES, PRIMEIRO, MAS TAMBÉM COM O PÚBLICO

4 Jul 2009 | Expresso Actual| Texto de Claudia Galhós Fotografia de Nuno Fox

QUANTAS MEMÓRIAS cabem num gesto? Quantos sorrisos são promessas de beijos? Quantos abraços ameaçam de morte um corpo? O palco enchia-se de vida. “A vida toda lá dentro”, dizia Pina Bausch. Durante muitos anos foi uma vida de sentimento, à beira do abismo, da queda, da agressão, do sofrimento, do desespero, da ausência. E uma perturbadora estranheza. Como um sonho. Mas um sonho muito humano. As mulheres de longos e esvoaçantes vestidos seduziam, eram seduzidas, eram maltratadas, eram crianças. Os homens eram carrascos, eram vítimas, eram crianças.


A SUA CARREIRA começa como bailarina clássica



Nas peças de Pina Bausch, a vida era presença de morte. Mas a vida era também presença de inocência. Nos episódios em que aqueles homens e mulheres perdiam a compostura, atiravam água para cima deles, pegavam no microfone e diziam uma qualquer tontice, eram homens e mulheres que ali podiam ser livres. Havia sempre uma oposição, uma tensão, em cada uma daquelas personagens. Aqueles homens e mulheres, nos seus fatos de cerimónia e nos saltos altos, eram homens e mulheres e eram crianças ao mesmo tempo. Eram perversos e eram pueris. Eram subjugados e subjugavam.

As aparentes cenas banais do quotidiano, pervertidas, distorcidas, desordenadas, expunham as entranhas em fortes imagens visuais. No fundo, havia uma pulsão de morte que arranca qualquer superficialidade daquelas vidas, e as atira de encontro às paredes, no desvario de um sentido pleno de existir. Também assim era Pina Bausch, consumida nessa entrega ao outro.
A dança nunca mais foi a mesma. O público reagiu mal a estes bailarinos que apareciam em palco como se fossem simples pessoas. Reagiram mal ao teatro que interrompia a exibição do movimento virtuoso, combinado com vídeo e música. Reagiram mal ao questionar dos corpos e dos comportamentos perfeitos. Reagiram mal à imagem da vida em comunidade representada em actos de desespero, tropeços, agressões, e o instalar de uma estética que destruía a imagem feita do belo e mostrava os homens e mulheres, apesar de vestidos de fato (eles) e de saltos alto (elas), dolorosamente perturbados. Uma crítica da “New Yorker” chegou a definir o seu trabalho como “pornografia da dor” e, em Portugal, o ensaísta António Pinto Ribeiro escreveu “Ser feliz é imoral?”. Afinal, com as peças dela impunha-se um outro sentido do gosto: já não era suportável aceitar o artificialismo da felicidade mentirosa e irreal da dança clássica, com os seus corpos belos.


Pina Bausch gostava mais de falar através das palavras dos outros, dos seus bailarinos, escritas em movimentos do quotidiano, que ela baralhava numa lógica narrativa fragmentária mais próxima da poesia do que da narrativa. Tinha essa habilidade de os ouvir, de os fazer falar. Tinha a generosidade de acolher as suas histórias e transformá-las em peças que eram testemunho de uma intimidade partilhada entre criadora e bailarinos e que é apenas um dos aspectos da revolução que ela trouxe para a dança, Pina Bausch acaba com as hierarquias entre coreógrafo e intérprete. Inverte o sentido da comunicação. A revolução acontece no momento em que ela coloca a primeira questão: O que sentes? Ou: O que pensas? Ou: O que viste? Os intérpretes passaram a ser co-autores das obras. Deixaram de ser meros autómatos que se limitam a cumprir indicações e a reproduzir gestos decorados, sem sentido nem alma. Ela pousava o silêncio e os olhos delicados sobre eles e absorvia tudo. Absorvia-lhes as emoções, as memórias, as alegrias e as dores. O corpo dela não tinha espaço para mais nada, a não ser essa profunda sensibilidade que se traduzia num acto de amor.

Talvez por isso, as primeiras peças sejam mais negras, num mergulhar profundo no interior do ser. Talvez por isso, nessa época, ela evitasse as entrevistas, porque a aventura da criação era a aventura do mistério, que existia em silêncio dentro de si. Demasiado próxima do lado negro da vida.

Pina Bausch veio a Portugal em 1989 pela primeira vez, aos Encontros Acarte, com a peça “E na montanha ouviu-se um grito”. A dança portuguesa contemporânea estava a dar os primeiros passos. Veio novamente em 1994, para um extenso e emblemático programa combinado entre os Encontros Acarte e Lisboa Capital Europeia da Cultura: “Café Müller”, “A Sagração da Primavera”, “Kontakthof”, “1980” e “Viktor”. A coreógrafa alemã chegou tarde a Portugal, mas chegou com força. Rapidamente se tornou um caso de mainstream raro no mundo da dança.
Nessas passagens, ela não dava entrevistas. Era uma mulher silenciosa, de silhueta frágil, consumida por um mundo de emoções. Era “
A Nossa Senhora da Dança”, que de maneira mais ou menos directa influenciou as gerações de bailarinos que estavam a surgir, enquanto o público se comovia, maravilhava, entristecia, ou sorria perante essas perturbações do viver. Diziam: ela não fala com a imprensa. Pensava-se: talvez... ela seja inacessível. Era apenas mais um equívoco. Como nas primeiras obras, que chocou audiências na Alemanha, que pensavam que ela queria provocar, quando ela apenas “sentia necessidade de expressar algo e tentava fazê-lo através da dança”. Durante anos pensou-se: é estrela, impõe uma distância, por isso não quer falar. Mas Pina Bausch era simplesmente tímida. Nas entrevistas. E esgotavam-se-lhe as palavras nas peças que construía. Começa aqui uma viagem ao mundo do silêncio de Pina Bausch, para lhe escutar a voz, por trás dos gestos e das palavras dos seus intérpretes.

Depois de várias esperas à porta do hotel onde estava hospedada, quis a sorte que a tenha apanhado um dia a sair. Qual das duas a mais envergonhada. Ela numa voz quase inaudível, um olhar em constante fuga para o lado, os gestos lentos da mão de dedos longos que leva o cigarro à boca, e o corpo quase estático, quase transparente, dizia apenas: “
Mas não tenho nada para dizer”. E ficávamos penduradas no silêncio. Constrangedor. À insistência, ela cedeu. “Vá ter comigo às tantas horas aos camarins da Gulbenkian”. E ela falou. Muito pouco. Muito sintética. Tão simpática e humilde quanto podiam ser as frases curtas que acabava por dizer sobre as suas peças, essas breves e emblemáticas convicções da crença no trabalho com os intérpretes, da importância das emoções no que faz mover os bailarinos e os paladares, cheiros e cores que levava de Lisboa, cidade à qual declar
Em 1998, depois de uma residência em Lisboa, em que criou “
Masurca Fogo”, inspirada nesse breve deambular pela cidade (no âmbito do Festival dos Cem Dias da Expo-98), voltámos a cruzar-nos para mais uma breve conversa arrancada às repetidas recusas da coreógrafa de dar entrevistas. Dessa vez, foi num banco num corredor dos bastidores do CCB. Ficaram as imagens do silêncio das respostas, a ampliar o jogo da atenção aos pequenos gestos. Aquelas mãos dela, os dedos tão compridos a desenhar pequenas coreografias no ar e a serem mais expressivos do que qualquer som que ela produzia. A repetida dificuldade de falar das suas obras. Mais tarde explicou: “Adorava dançar porque tinha medo de falar. Quando estava a mover, conseguia sentir”.

Teóricos organizam o percurso de 41 anos de carreira como coreógrafa por períodos temáticos. Mas há claramente duas fases distintas, que têm “Masurca Fogo” como ponto de viragem. Ou Brasil e a peça “Água”, criada em residência naquele país, como inauguradora de uma nova fase. A “rainha das profundidades” como chegou a ser chamada, estava mais leve. Não tanto na aparência, que permanecia envolta nas roupas negras e na figura frágil, mas no conteúdo da obra, que parecia expressar mais a dimensão descontraída e feliz do quotidiano, com os bailarinos em fato-de-banho e toalhas de praia com desenhos de corpos de formas generosas, suavizando a dimensão psicológica complexa que caracterizou as primeiras décadas.

“Água” passou por Lisboa (CCB) em 2003, e a coreógrafa também estava diferente. Acompanhava o temperamento da obra, fazia-se mais leve, mais comunicativa. Nesse ano deu entrevistas, conferência de imprensa, ainda se esquivou a perguntas que descodificavam o sentido da obra, mas riu-se e disse piadas. O comportamento errante e desordenado daqueles homens e mulheres correspondia a uma banalidade do existir que perdia a sua densidade psicológica. Tornaram-se quase insignificantes e não chegavam a ser perturbadores.

Nos últimos anos, Pina Bausch tornou-se presença frequente nos palcos portugueses. Em Maio do ano passado revelou-se um verdadeiro fenómeno de massas, com o público a esgotar o programa de “
Um Festival Pina Bausch”. Foi uma despedida muito especial, com revisitação de peças históricas e a oportunidade de a rever em cena, já com 67 anos, nessa preciosa e tão fortemente simbólica peça que é “Café Müller”. Nessa ocasião ela continuava muito comunicativa, mas parecia ainda mais delicada fisicamente. O cenário reproduz um café, com as cadeiras espalhadas pela sala, simbólicas da ausência, da solidão, como obstáculos. É uma obra que fala da ruptura amorosa, da dor e da solidão. Pina Bausch dançou em Lisboa pela última vez. Os gestos de um corpo fantasma, num ondular sonâmbulo, interior, profundo. Havia algo de cada pessoa em cada um dos seus movimentos. No abandono. Na queda. Quase a desaparecer. Transparente. A dança de Pina Bausch era uma dança pessoal, de intimidade, e tão viva que vivia em si a presença da morte, a cada instante. Era uma dança maior que a própria dança. Era um fragmento do mundo num palco. E isso ela sabia explicar: “Se cada um for ao fundo dos seus sentimentos, acredito que há uma linguagem que todos partilhamos, que todos falamos e na qual todos nos entendemos e nos encontramos. É dança, é movimento, mas é também tudo o que nos ajuda a expressar melhor aquilo que nos move”. A dança não mais vai falar assim.


4 Jul 2009 | Expresso Actual| Texto de Claudia Galhós Fotografia de Nuno Fox

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