Uma outra forma de ler Folhas Caídas, de Almeida Garrett.
Vou em mim como entre bosques | Fernando Pessoa
[Le Blanc-Seing, 1965, Magritte]
Vou em mim como entre bosques,
Vou-me fazendo paisagem
Para me desconhecer.
Nos meus sonhos sinto aragem,
Nos meus desejos descer.
Passeio entre arvoredo
Nos meandros de quem sinto
Quando sinto sem sentir...
Vaga clareira de instinto,
Pinheiral todo a subir...
Sorriso que no regato
Através dos ramos curvos
O sol, espreitando, achou.
Fluir de água, com tons turvos,
Onde uma pedra adensou.
Grande alegria das mágoas
Quando o declive da encosta
Apressa o passo ou querer...
De que é que a minha alma gosta
Ser que eu tenho de saber.
Muita curva, muita coisa,
Todas com gentes de fora
Na alma que sinto assim.
Que paisagem quem se ignora!
Meu Deus, que é feito de mim?
4-8-1930
Fernando Pessoa
Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). - 142.
Rui Manuel Amaral & Adília Lopes [associação muito livre]
O que os peixes decidiram fazer
Rui Manuel Amaral
Todos os dias, um pescador lançava as redes, plaf, à água. Longas horas no meio do mar, lançando as redes, plaf, plaf, plaf, com gestos de semeador apaixonado. Os peixes, esses, aguardavam alegre e pacientemente a vez de serem pescados, borbulhando intermináveis declarações de amor ao pescador.
O caso é que, por uma sucessão de intermináveis azares e infortúnios, pescador e peixes falhavam sempre os seus encontros. Os peixes corriam como loucos, de olhos esbugalhados, atrás do pescador e este sulcava incansavelmente as ondas no encalço daqueles. Mas parecia que quanto mais insistiam neste assíduo labor, mais excitavam a crueldade dos elementos. E, dia após dia, semana após semana, mês após mês, as redes permaneciam vazias.
Ora, cansados de tanta correria para nada, os peixes decidiram acabar com aquilo. “Chegou o momento de lançarmos as nossas redes”, disseram os peixes que tinham barbatanas vermelhas. “Chegou o momento de recuperarmos o tempo perdido”, disseram os que tinham barbatanas azuis. E assim foi. Os peixes lançaram as suas redes e pescaram sem dificuldade o pescador. Em poucos segundos, o homem evaporou-se da superfície das águas como se evapora uma aparição da Virgem. (Doutor Avalanche, pag, 33)
O caso é que, por uma sucessão de intermináveis azares e infortúnios, pescador e peixes falhavam sempre os seus encontros. Os peixes corriam como loucos, de olhos esbugalhados, atrás do pescador e este sulcava incansavelmente as ondas no encalço daqueles. Mas parecia que quanto mais insistiam neste assíduo labor, mais excitavam a crueldade dos elementos. E, dia após dia, semana após semana, mês após mês, as redes permaneciam vazias.
Ora, cansados de tanta correria para nada, os peixes decidiram acabar com aquilo. “Chegou o momento de lançarmos as nossas redes”, disseram os peixes que tinham barbatanas vermelhas. “Chegou o momento de recuperarmos o tempo perdido”, disseram os que tinham barbatanas azuis. E assim foi. Os peixes lançaram as suas redes e pescaram sem dificuldade o pescador. Em poucos segundos, o homem evaporou-se da superfície das águas como se evapora uma aparição da Virgem. (Doutor Avalanche, pag, 33)
A BIFURCAÇÃO SUCESSIVA , de Adília Lopes
Divido a minha vida
em duas partes
uma em que tinha orelhas
e não tinha brincos
uma em que já não tinha orelhas
e toda a gente me dava brincos
para me consolar de duas coisas
de não ter orelhas
e de não ter tido brincos
quando tinha orelhas
de todos nós assim era só eu
porque orelhas tinha duas
em duas partes
uma em que tinha orelhas
e não tinha brincos
uma em que já não tinha orelhas
e toda a gente me dava brincos
para me consolar de duas coisas
de não ter orelhas
e de não ter tido brincos
quando tinha orelhas
de todos nós assim era só eu
porque orelhas tinha duas
Etiquetas:
Adília Lopes,
Rui Manuel Amaral
Rui Manuel Amaral & Filipa Leal [associação muito livre]
[imagem daqui]
A ÁRVORE
RUI MANUEL AMARAL
Não me lembro quando começou. Não sou bom a memorizar datas. Mas tenho ainda presente o espanto, o assombro, o medo, o assombro e o espanto que senti quando, uma manhã, ao acordar, dei de caras com a árvore. Uma árvore imensa plantada no meio do apartamento. Um gigante de longas raízes negras, que irrompera do fundo do soalho, durante a noite. Os ramos, tão numerosos como uma floresta, cobriam todas as divisões. As folhas farfalhavam no ar e batiam-me nos olhos.
Nesse mesmo dia, cortei-a pela base e livrei-me daquilo tudo. À noite, estendi-me na cama e adormeci muito satisfeito. Na manhã seguinte, porém, a árvore achava-se no mesmo local da véspera. E parecia ainda maior e mais frondejante. Cortei-a de novo e tudo se repetiu: de manhã lá estava o monstro verde, conspirando pacífica e vegetalmente, no meio do apartamento. No meu desespero, cheguei a queimar toda a madeira num instante. Mas bastavam alguns segundos para ela irromper do chão, ainda mais convincente e definitiva, e lançar os ramos contra os vidros.
Nesse mesmo dia, cortei-a pela base e livrei-me daquilo tudo. À noite, estendi-me na cama e adormeci muito satisfeito. Na manhã seguinte, porém, a árvore achava-se no mesmo local da véspera. E parecia ainda maior e mais frondejante. Cortei-a de novo e tudo se repetiu: de manhã lá estava o monstro verde, conspirando pacífica e vegetalmente, no meio do apartamento. No meu desespero, cheguei a queimar toda a madeira num instante. Mas bastavam alguns segundos para ela irromper do chão, ainda mais convincente e definitiva, e lançar os ramos contra os vidros.
Pouco a pouco, desisti de lutar contra os desígnios da natureza, se assim me posso exprimir. Tentava concentrar-me nas velhas tarefas domésticas, mas a minha atenção perdia-se por entre os ramos, nas folhas verdes e amarelas que ondulavam pelo tecto como borboletas caprichosas. Entretanto, um pássaro começou a cantar, depois outro e outro ainda, e pequenos animais despontaram de todos os lados, correndo e escondendo-se na erva.
Daí por diante, a casa transformou-se num bosque interminável, cheio de ruídos misteriosos, locais sombrios, segredos profundos. Por esta altura, creio que já não consigo encontrar a porta da rua. A vida nos bosques não é a melhor coisa do mundo, mas são tempos difíceis estes em que vivemos. E de um modo geral, tenho de o dizer sem falsa modéstia, estou a sair-me bem.
Daí por diante, a casa transformou-se num bosque interminável, cheio de ruídos misteriosos, locais sombrios, segredos profundos. Por esta altura, creio que já não consigo encontrar a porta da rua. A vida nos bosques não é a melhor coisa do mundo, mas são tempos difíceis estes em que vivemos. E de um modo geral, tenho de o dizer sem falsa modéstia, estou a sair-me bem.
Amaral, Rui Manuel, Doutor Avalanche, Angelus Novus, 2010 [pg. 39]
O PROBLEMA DE SER NORTE, Filipa Leal
Era um verso com árvores à volta.
Tinha o problema de ser norte
e dia e tão contrário à natureza.
Era um verso sem ar livre
mas com árvores em círculo
e eu no centro, em baixo, nas escadas
de pedra, cheia de verde e de frio
e a pensar que continuo a não entender
a natureza contrária aos meus olhos.
Pois se as árvores são a única
paisagem deste verso, a toda a volta,
e eu no fundo, em baixo, nas escadas
de pedra ainda, se voltando-me, morrendo,
serão elas ainda a única paisagem deste verso,
como poderei amá-las
sem que
um
raro
silêncio ainda
me interrompa?
Filipa Leal, O Problema de Ser Norte, Deriva Editores
Etiquetas:
Filipa Leal,
Rui Manuel Amaral
O HOMEM QUE TINHA DOIS CORAÇÕES, Rui Manuel Amaral
O HOMEM QUE TINHA DOIS CORAÇÕES
* Não é verdade. Estava assaz ansioso por escrever isto. Mas procuro ser um narrador competente e, por isso, esperei pela altura certa para fazer esta significativa revelação.
Amaral, Rui Manuel, Doutor Avalanche, Angelus Novus, 2010 [pg. 101]
Era uma vez um homem que a natureza dotara com dois corações. Ou seja, em cujo peito pulsavam dois corações. Ou seja, que viera a este mundo com dois desses maravilhosos órgãos. Tudo muito bem.
Certo dia, porém, um dos corações parou. Nada de muito grave, uma vez que o homem dispunha ainda do segundo. O problema é que a história não é assim tão simples. Esqueci-me de referir* que os dois corações dedicavam um ao outro uma paixão antiga, profunda e avassaladora. Como se costuma dizer, no coração daqueles corações ardia a chama do mais puro amor. Assim, quando o primeiro parou, o segundo derreteu-se em lágrimas e deixou de bater por causa do desgosto.
Concluindo, o homem não resistiu e morreu. Seja como for, a morte não resultou destes sobressaltos cardíacos, digamos assim. O homem faleceu na Arcádia em virtude de uma mordedura de serpente. E agora que está morto, a vida também não lhe tem sido fácil.
* Não é verdade. Estava assaz ansioso por escrever isto. Mas procuro ser um narrador competente e, por isso, esperei pela altura certa para fazer esta significativa revelação.
Amaral, Rui Manuel, Doutor Avalanche, Angelus Novus, 2010 [pg. 101]
Etiquetas:
Rui Manuel Amaral
Preparação para o teste de avaliação: Não És Tu, Almeida Garrett
[ilustração Rachel Caiano]
[preparação para o teste de avaliação]
Não És Tu
Era assim, tinha esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ar,
Corava da mesma cor,
Aquela visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.
Toda assim; o porte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ela descia
Como um véu que lhe envolvia,
Que lhe adoçava a beleza.
Era assim; o seu falar,
Ingénuo e quase vulgar,
Tinha o poder da razão
Que penetra, não seduz;
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.
Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume ,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.
Mas não és tu... ai!, não és:
Toda a ilusão se desfez.
Não és aquela que eu vi,
Não és a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lho senti.
Almeida Garrett
1. O poema organiza-se na base da oposição entre passado e presente.
1.1. Faz a caracterização da mulher vista no passado e vista no presente.
12. Encontra uma palavra para caracterizar cada visão.
1.3. Delimita os momentos em que o texto se estrutura, justificando a divisão.
1.4. Atenta nos verbos principais. Explica o valor do imperfeito, do pretérito perfeito e do presente.
2. Há uma diferença entre a imagem do tu no passado e no presente.
2.1. Como se justifica essa diferença?
2.2. Comprova que o tipo de conhecimento utilizado pelo eu para conhecer o tu é importante para detectar as diferenças.
3. Como nos poemas já analisados, a mulher aparece sempre idealizada.
3.1. Encontra no texto palavras ou expressões que comprovem essa idealização.
3.2. Que figura de estilo suporta a idealização da mulher?
4. Há no poema várias figuras de estilo que geram a expressividade da linguagem.
4.1. Identifica os segmentos de discurso que efectivam a anáfora, a antítese, a comparação e a sinestesia.
4.2. Explica o sentido e a expressividade dessas figuras de estilo.
5. A oposição fogo/luz é recorrente na poesia de Garrett.
5.1. Para que tipos de amor apontam esses dois vocábulos?
5.2. Qual é o amor considerado mais perfeito? Porquê?
6. A parateatralidade ou a tendência para a oralidade é urna das características do discurso de Garrett.
6.1. Indica os elementos que realizam a parateatralidade, neste texto.
7. Caracteriza, finalmente, a mulher na base da oposição “ter coração” / “não ter coração”.
Orientações
Tema: desilusão amorosa.
Assunto: tentativa da posse do Ideal através de uma visão, verificando no fim que a mulher presente não o corresponde no amor.
Proposta de delimitação:
1ª parte - estrofes 1 – 4: descrição da visão, sonho, mulher, amor idealizado;
2ª parte - estrofe 5: a mulher presente não é a da sua visão / idealização. (adversativa "mas")
Estado de espírito do Eu:
- sofrimento provocado pela desilusão;
- desejo de regressar ao passado, em que vivia um amor espiritual, uma época de sonho e paz, pois, no presente, está a viver um amor carnal que o faz infeliz;
- sonhador, iludido, perdido pela ânsia de amar e ser amado;
- desiludido, impotente pela não correspondência do seu amor;
- concepção neoplatónica do amor – frustração por não possuir o Ideal;
- desejo de regressar ao passado, em que vivia um amor espiritual, uma época de sonho e paz, pois, no presente, está a viver um amor carnal que o faz infeliz;
- sonhador, iludido, perdido pela ânsia de amar e ser amado;
- desiludido, impotente pela não correspondência do seu amor;
- concepção neoplatónica do amor – frustração por não possuir o Ideal;
Toda a ilusão se desfez (v. 26)
Não és a mesma visão (v. 28)
Quando eu sonhava de amor, / Quando em sonhos me perdi (vv. 5–6)
(...) véu que lhe envolvia (v. 11)
(...) beleza (v. 12)
(...) não seduz (v. 16)
Não era fogo, era luz (v. 17)
(...) rosas celestes / Rosas brancas, puras, finas / Viçosas como boninas /
/ Singelas sem ser agrestes (vv. 22-24)
Passado - Não era fogo, era luz / que mandava ao coração
Fogo – paixão
Luz – razão
AMOR ESPIRITUAL
Presente - Não és a mesma visão, /Que essa tinha coração/ essa tinha coração – amor espiritual transformado em amor carnal (a mulher mudou e a ilusão desfez-se)
A descrição da mulher / visão faz-se:
- pela aproximação aos sentidos:
visão (vv. 1-4, 7, 19)
audição (vv. 13-16)
olfacto (vv. 20-21)
pela comparação com a mulher real.
O tipo de relação EU – TU:
dependência;
submissão do EU ao TU, pois a mulher exerce um poder tão grande que o EU se sente totalmente dominado, mesmo com uma situação de desilusão.
Tempos verbais:
oposições:
Passado / Presente
Amor Espiritual / Amor Carnal
Razão / Paixão
Sonho / realidade
Pretérito Imperfeito: era, tinha, corava, ...
- mostra a situação amorosa do passado, em que se encontrava feliz e iludido com a beleza da mulher amada;
- Presente Indicativo – descreve a situação actual em que toda a ilusão se
desfez em que só sente paixão e amor carnal. Desejando, pois, regressar
ao amor espiritual.
Recursos estilísticos:
- sinestesia: Que lhe adoçava a beleza
Rosas brancas, puras, finas / Viçosas
- hipérbole: Nos olhos tinha esse lume
- assíndeto: ausência da conjunção coordenativa copulativa (vv. 1-3, 19-24)
- adjectivação múltipla: altivo (v. 7), pensativo (v. 8), ingénuo, vulgar (v. 14), celestes (v. 21), brancas, puras, finas / Viçosas (vv. 22-23), singelas, agrestes (v. 24),
- comparação: Como um véu (v. 11), Viçosas como boninas (v. 23),
- metáfora: sonhava de amor (v. 5, em sonhos me perdi (v. 6), Não era fogo, era luz / Que mandava ao coração (vv. 17-18), lume (v. 19), perfume (v. 20), Um cheiro a rosas celestes / (...) agrestes (vv. 21-24)
(associação do perfume da mulher ao perfume das rosas)
- interjeição: última estrofe; ai! (v. 25)
- anáfora: Quando (vv. 5-6) não és (vv. 27-28), Era assim (vv. 1-13)
- antítese: fogo / luz (v. 17)
- repetição: não és (v. 25), tinha (vv. 29-30), assim (vv. 1, 7, 13)
- repetição: não és (v. 25), tinha (vv. 29-30), assim (vv. 1, 7, 13)
- enumeração: vv. 7-9, 13-18
Análise formal:
--cinco sextilhas de 6 e 7 sílabas
- esquema rimático: a a b c b c
- rima: emparelhada e cruzada
- rima aguda: estrofes ímpares
- rima grave: estrofes pares
- esquema rimático: a a b c b c
- rima: emparelhada e cruzada
- rima aguda: estrofes ímpares
- rima grave: estrofes pares
Noivado do Sepulcro, Soares dos Passos
[a propósito da aula de quinta-feira passada e do ultra-romantismo]
Saber mais sobre Soares dos Passos aqui.
O NOIVADO DO SEPULCRO
BALADA
Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.
Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.
Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:
"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?
"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?
"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!
"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.
"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!
– "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
– "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.
Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.
"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?
"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
– "Oh vejo sim... recordação fatal!
– "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.
"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"
E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d'infeliz amor.
Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.
Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.
Soares dos Passos
Saber mais sobre Soares dos Passos aqui.
O NOIVADO DO SEPULCRO
BALADA
Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.
Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.
Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:
"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?
"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?
"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!
"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.
"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!
– "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
– "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.
Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.
"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?
"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
– "Oh vejo sim... recordação fatal!
– "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.
"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"
E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d'infeliz amor.
Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.
Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.
Soares dos Passos
Etiquetas:
romantismo,
Soares dos Passos
Pastor, pastorzinho...
Hoje foi o primeiro dia de uma viagem...
Pastor, pastorzinho,
onde vais sozinho?
Vou àquela serra
buscar uma ovelha.
Porque vais sozinho,
pastor, pastorzinho?
Não tenho ninguém
que me queira bem.
Não tens um amigo?
Deixa-me ir contigo.
Eugénio de Andrade
Etiquetas:
Corujeira,
Eugénio de Andrade
Hedda, a partir de Hedda Gabler de Henrik Ibsen
[...]
"Lovborg - Escrevi um livro para agradar.
Hedda - Isso é possível?
Lovborg - É mais fácil do que parece. Basta juntar as palavras pela ordem certa.
Hedda - Qual é a utilidade?
Lovborg - Para quem?
Hedda - Para quem lê.
Lovborg - É torna-se útil.
Hedda - Isso parece-me desinteressante."
[...]
Assinar:
Postagens (Atom)