Desvio de Ibsen [Hedda]

Desvio de Ibsen
Teatro

 [José Maria Vieira Mendes]

É sempre uma aventura re-escrever radicalmente outro texto dramático. E cada aventura significa risco. Esta é a situação de Hedda, baseada, ou antes, inspirada na peça de extremo rigor estrutural de Henrik Ibsen (1828-1906), Hedda Gabler (1890). Toda essa cumplicidade fiel e infiel podia ser objeto de um belo seminário e seminários não têm faltado nos últimos anos. Para alguém que quinzenalmente escreve a sua visão crítica dos espetáculos oferecidos ao público, o problema é outro. Tem de dizer, se possível claramente, como resultou quer a passagem de um texto para o outro, quer a solução adotada sobre os outros elementos que compõem o espetáculo: encenação, intérpretes, solução espacial, guardaroupa, iluminação. Em princípio, todos esses elementos existem e coexistem em desequilíbrio neste espetáculo que os Artistas Unidos nos oferecem.
Comecemos pelo princípio. O neotexto do dramaturgo José Vieira Mendes (1976), não é uma adaptação dramatúrgica de um texto do fim do século XIX para as novas condições de receção do início do século XXI, mas uma escrita nova a partir do argumento e personagens ibsenianas. Porém, a complexidade estrutural e a riqueza dramática da peça de origem resistem a uma leitura hiperfragmentada que tende a separar e a abstratizar as situações urdidas dentro de um regime de verossimilhança ainda que por vezes simbólica. A efemeridade permanente da realidade que o novo texto configura é bem traduzida pela nova personagem Hedda, não sabendo muito bem o que quer. Além de alguns achados e boas soluções, uma dela fascinante e cinematográfica, quando Hedda antes de se suicidar toca piano perfeitamente: ela que não sabia tocar, descobre que afinal sabe.
A opção de, segundo o seu autor, acentuar "a narração como se nesta Hedda tudo viesse da cabeça da protagonista", cria dificuldades para o espectador em seguir a narrativa, quer lógica quer intuitivamente.
Situação que se repercute no próprio elenco de atores já em si de valor, mas ostensivamente diferenciado.
É fácil imaginar que não é de ânimo leve que se contracena com a atriz Maria João Luís; porém, aqui os contrastes são por demais negativos. O enfraquecimento da tensão dramática não fica a dever-se tanto a diferença de idades entre a frustrada Hedda e a resignada Thea, mas entre a insegura Hedda e o seu desnorteado marido. A opção anti naturalista do novo texto dramático contrasta, por exemplo, com o realismo da interpretação da cena da bebedeira de Lovborg.
[...]
Falar da peça de José Vieira Mendes, Hedda, obriga a falar de Hedda Gabler de Ibsen, e de como esta peça foi importante para a tomada de consciência da necessidade de realização individual face a uma sociedade feita de clichês.
A Hedda de 2010 diz para a jovem Thea: "Aprende comigo.Vê-me a fazer. Talvez um dia sejas capaz. De escrever as tuas próprias palavras.", a mostrar como as temáticas ibsenianas continuam a questionar-nos.

Helena Simões, Jornal de Letras 6 de Outubro de 2010

Nenhum comentário: