A mulher e o sofá, [Hedda]


Numa rescrita da peça de Ibsen, Hedda Gabler perde o apelido paterno mas conserva as pistolas do general Gabler

Em 1890 era publicada a "Hedda Gabler", de Ibsen, e representada um ano depois, em Munique.
Em 2010 é publicada a "Hedda", de José Maria Vieira Mendes, para ser representada logo de seguida.
O que é que se passou entre os dois textos, em que é que estes 120 anos de diferença entre uma e outra peça contribuíram para alterar o original? Vejamos as indicações iniciais da peça de Ibsen: "Uma sala de estar espaçosa, bem mobilada e com muito bom gosto, decorada em cores escuras." Segue-se uma página de mais indicações, entre as quais uma extensa lista de objetos: uma mesa oval coberta por uma toalha; cadeiras; uma salamandra; uma poltrona de encosto alto; um banco almofadado e dois tamboretes; um sofá de canto; uma mesinha redonda; um sofá; um piano-forte; prateleiras com peças decorativas de terracota e majólica; um sofá; uma mesa; duas cadeiras; o retrato a óleo de um senhor de idade, elegante, em uniforme de general; um candeeiro de vidro fosco; vários ramos de flores dispostos em vasos e jarras; mais ramos de flores sobre as mesas; tapetes espessos.
"Hedda", de José Maria Vieira Mendes, começa assim: "Uma sala. Caixotes por desempacotar, alguma mobília, desarrumação." Seguem-se duas frases sobre organização do espaço, e é tudo. Mesas, cadeiras, sofás, porcelanas, candeeiros, tudo pela borda fora. Com eles foi também Berta, a criada da "Hedda Gabler" imaginada por Ibsen.
"Muitas das convenções do Ibsen não estão vivas, eu já não suporto ver peças em que a criada vem dizer 'está aqui a senhora fulana de tal'. Toda essa ganga, essa convenção dramática com que o naturalismo cristalizou, eu não a consigo suportar. Não quer dizer que daqui a 40 ou 50 anos essas técnicas narrativas não venham a renascer, e sejam interessantes, mas agora não as consigo ler", diz Jorge Silva Melo, que encena e que teve a ideia de tudo. Queria fazer a "Hedda Gabler", queria que fosse aMaria João Luís a fazer o papel,mas queria que José Maria Vieiran Mendes rescrevesse a peça, queria sentir que trabalhava com palavras que estão a ser ou que acabam de ser escritas, queria fazer coincidir o espetáculo com a origem dele. "Interessou-me ver, em cem anos, entre Ibsen e o Zé Maria, o que é que mudou. Eu acho que o Zé Maria desenvolveu um lado muito infantil, ele diverte-se com estas personagens, acha os dramas delas risíveis. Isso nunca me passaria pela cabeça, por isso acho graça que o Zé Maria me venha iluminar uma peça que conheço, por assim dizer, desde que comecei a ler", continua o encenador.
A peça de Ibsen começa no dia a seguir à chegada do casal Hedda Gabler - agora Tesman - e Jorgen Tesman à sua casa, vêm de viagem de núpcias, seis meses pela Europa. Quando a tia Juliana lá vai, de manhã, ainda está tudo a dormir. Na peça de Ibsen, a centralidade de Hedda Gabler coexiste com um equilíbrio perfeito entre ela as outras personagens, um equilíbrio que começa e que depende, essencialmente, da teia de palavras que Ibsen constrói com uma mestria inultrapassada. José Maria Vieira Mendes desequilibra voluntariamente a peça, confere às personagens um carácter reflexivo que no original elas não possuem, ou não formulam. Como diz Jorge Silva Melo, "isto é uma Hedda 'depois', não sei se é Gabler, mas é depois de Ibsen. Esta Hedda já viu a peça, lembra-se dela, sabe como acaba".
 A Hedda moderna, como a antiga, vive insatisfeita, sem saber porquê; gosta mais do marido do que a de Ibsen, mas isso não a satisfaz; sente em Thea uma rival (na nova versão, Thea é bastante mais nova) porque Thea partilha com Eilert Lovborg aquilo que Hedda finge desprezar: a possibilidade de escrever.
Em qualquer das "Heddas", a escrita émotivo de realização pessoal, frustração, inveja, ansiedade e morte.
Em qualquer das peças, Hedda procura um ideal que poderia ser substituído, eventualmente, pela única coisa que ela não consegue fazer: trabalhar. Em 1890, porque uma mulher burguesa não está preparada para isso; em 2010, porque... porque... porquê?
Na "Hedda" de José Maria Vieira Mendes, a tia Juliana faz apenas duas entradas - "de leão", seja dito - para debitar dois extraordinários discursos sobre as rotinas como forma de vida, ou de sobrevivência, e que ecoam fortemente o discurso de Winnie, de "Dias Felizes", sobre a mesma coisa, aliás; só que aqui é Hedda, claro, e não a tia Juliana, quem tem as pistolas (as armas resistem bem às alterações cronológicas, como é sabido). Aliás, as pistolas são, com o sofá em que passa uma boa parte do tempo, o essencial do mundo de Hedda, uma Hedda que agora, como diz Jorge Silva Melo, "nem sequer arruma a casa. A sua vida é um sofá, o sofá é o corpo dela".
Na "Hedda" de 2010 o tempo é fortemente, explicitamente, tematizado. Lovborg, o ex-amante e escritor, é uma personagem para quem, segundo Jorgen Tesman, "os dias não existem, o sol não nasce nem se põe". Bem gostaria Jorgen, o marido de Hedda, de parar o tempo: "O segundo dia dos Tesman. Preferia que o primeiro não tivesse ainda acabado. Tentar prolongá-lo. Só que o sol não espera." À sensatez de Tesman opõe Hedda o seu delírio idealista: "Porque eu, se quiser, sou capaz de acelerar o tempo. Faço avançar as horas. Encolho os dias." Contudo, foi para Ulisses e Penélope, não para Hedda, que Atena "reteve o fim do longo percurso da noite; reteve junto das correntes do Oceano a Aurora de trono dourado". Ulisses e Penélope amavam-se e sabiam o que queriam.
Hedda tem direito apenas ao cinismo do juiz Brack: "Não se pode ter tudo o que se quer. Sobretudo quando não se sabe o que se quer." "Hedda" tem interpretação de Maria João Luís, Rita Brütt, António Pedro Cerdeira, Marco Delgado, Lia Gama e Cândido Ferreira. O cenário e os figurinos são de Rita Lopes Alves, o desenho de luz é de Pedro Domingos.

João Carneiro, Expresso, 11 de Setembro de 2010.

Nenhum comentário: